Pular para o conteúdo principal

Batalha


A viagem não é longa, o viajante pode ir devagar. E, para seu maior descanso, deixa a estrada principal e segue por esta, modestíssima, que faz companhia ao rio Lis. É um modo de preparar-se em paz para enfrentar o Mosteiro de Santa Maria da Vitória. O viajante escreve estas palavras muito seguro de si mas em seu íntimo sabe que não tem salvação possível. Onde dez mil páginas não bastariam, uma é demais. Tem muita pena de não estar viajando de avião, assim poderia dizer: "Mal pude olhar, ia muito alto" Mas é pelo chãozinho natural que vai, e está quase a chegar, não há aqui fugir um homem ao seu dever. Mais fácil tarefa foi a de Nuno Álvares, que só teve de vencer os castelhanos. Saramago, Viagem a Portugal, p. 291.

Estamos em Batalha conduzidos pelo senhor Bernardino, que nos conta detalhes da paisagem e da história do país. O Mosteiro de Santa Maria da Vitória é o conhecido Mosteiro de Batalha - a batalha a qual se refere é a de Aljubarrota, que fica há menos de cinco quilômetros. Em  1385, os portugueses venceram os castelhanos, e devem muito a Dom Nuno Álvares Pereira, cuja estátua equestre está como que tomando conta do mosteiro. 



O senhor Bernardino conta as façanhas militares de Dom Nuno; seu arrependimento pelas mortes causadas e sua decisão de partilhar todos os seus (muitos) bens entre amigos e familiares, que não estranharam a decisão (hum... ficaram com tudo; reclamar para quê?) e foi tratar de leprosos. Ainda segundo o senhor Bernardino, foi somente há poucos anos que os cardeais castelhanos deixaram de vetar o seu nome para santo. Por mais de 600 anos, o rancor falou mais alto. Foi somente em 2009 que se tornou São Nuno. Definitivamente, o senhor Bernardino torna a viagem muito mais agradável do que parece ter sido a do viajante...

Almoçamos no Restaurante Vintage, no Hotel Mestre Afonso Domingues, que deve o nome ao responsável pela construção do mosteiro. Enquanto comíamos, contemplávamos o Mosteiro e Dom Nuno.




E, como disse o viajante:

Ao entrar na Sala do Capítulo, tem na lembrança aquelas páginas de Alexandre Herculano que o impressionaram na infância: o velho Afonso Domingues sentado sob a pedra de fecho da abóbada, os serventes retirando as escoras e o cimbre, em ânsias não fosse desmoronar-se a construção, e, da banda de fora, espreitando pela porta ou pelas janelas laterais, a multidão de obreiros, com algum fidalgo à mistura, em ansiedade igual: "Cai, não cai", não faltava quem tomasse o desastre por garantido, e, enfim, passando o tempo e sustentando-se o grande céu de pedra, o dito de Afonso Domingues: "A abóbada não caiu, a abóbada não cairá". p. 293.



Comentários

  1. Batalha é realmente sensacional, a história de Dom Nuno encantou os pequenos, o restaurante foi uma releitura francesa da culinária portuguesa. Tudo divino!! Antes de entrarmos no mosteiro, fomos a uma pastelaria ( infelizmente não me recordo o nome), cuja vitrine parecia o "paraíso das delícia". Simplesmente impossível se decidir acerca do que comer, tal a variedade de gostosuras à disposição.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n