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Mostrando postagens de 2016

O remanescente, de Rafael Cardoso

O escritor e historiador da arte Rafael Cardoso lançou O remanescente, simultaneamente aqui (Companhia das Letras) e na Alemanha (Fischer). Romance baseado na vida de seu bisavô, Hugo Simon, ex-ministro das finanças, banqueiro judeu na Alemanha do entre-guerras, é o resultado de uma intensa pesquisa e reconstrução histórica. Grande personalidade de Weimar, transitando entre personalidades como Thomas Mann e Einstein e um foco de resistência ao nazismo, Simon, junto com sua família, é obrigado a deixar a Alemanha, partindo inicialmente para a França, o que logo se revela uma opção não muito segura. Rafael Cardoso constrói com rigor seus personagens e seus ambientes - a Alemanha, o sul da França "liv re" , a vinda para o Brasil. O destino encontrad o para sair da Europa foi um lugar meio esquisito e exótico - o Brasil do Estado Novo , ainda não dec idido a apoiar o s aliados .   O uso de passaportes falsos (Hugo Simon e sua esposa Gertrud se transformaram no

2016

Ano complicado, dedicado a escrever - o que tira muito do tempo para ler. Mesmo assim, um ano muito bom; a qualidade superou, em muito, a quantidade. Quatro clássicos (ou três e meio, vá lá): Madame Bovary, de Flaubert, As Viagens de Gulliver, de Swift, o Livro I de Don Quijote e Doutor Fausto, de Thomas Mann. Isso, por si, já justifica um ano de leituras. O negociante de inícios de romances, de Matéi Visniec , para mim, foi uma grande surpresa e, até onde sei, um dos livros negligenciados pelos resenhistas. O messias de Estocolmo, de Cynthia Oczik não é um lançamento, permanecendo inédito por aqui, infelizmente. Ponto para o livro digital... e, claro, um ano de lançamento de Ian McEwan ( Enclausurado ) é sempre um ano diferente. Brasileiros: os ótimos O romance inacabado de Sofia Stern, de Ronaldo Wrobel , e O Remanescente, de Rafael Cardoso . 2016 foi não apenas um ano com novidade de McEwan, mas também de Manguel ( Uma história natural da curiosidade). E se Philip Ro

O complexo de Portnoy, de Philip Roth

Este blog nasceu em 2011, quando Philip Roth já havia pendurado a caneta. De minha parte, comecei a ler sua obra a partir de 2000, com Operação Shylock (1993). Este ano, numa homenagem privada, depois do papelão sueco, resolvi ler aquele que, para muitos, é o seu melhor livro: O complexo de Portnoy, de 1969. Escrito no auge da revolução sexual, é para mim um dos livros mais divertidos e engraçados que conheço. Há, sim, algo de Woody Allen na história de Alexander Portnoy, que narra sua vida, suas neuroses e suas frustrações ao psicanalista (que nada fala), o dr. Spielvogel. A mãe judia, o pai que trabalhava numa corretora de seguros (como, aliás, o pai de PR), a irmã obesa. A namorada culta não é boa de cama; a namorada liberada é simplesmente "inapresentável" intelectualmente - o que me lembra uma versão muito mais divertida de Cabeças Trocadas e Thomas Mann. E seu ataque frustrado a uma jovem do exército israelense... aliás, Roth é criticado com frequência pelas

O pecado do padre Ondrej, de Jaroslav Hasek

Tradução a partir da versão inglesa: Padre Ondrej estava agora em seu décimo oitavo ano no Purgatório e ainda não entendia o porquê. Seu caso ainda não havia alcançado a sentença final, embora a pressão das almas chegando ao Purgatório tenha aliviado nos últimos dois anos. A maioria das almas hoje em dia faz apenas uma rápida parada por lá e é então conduzida, rangendo os dentes, para o Inferno. De vez em quando, ele criava coragem para perguntar a um dos Anjos da Guarda: “Por que os senhores continuam me prendendo aqui? ” Eles encolhiam suas asas e diziam: “Seu caso ainda não foi decidido, Senhor Reverendo.” Essas palavras o deixavam desconfortável, como apenas uma alma no Purgatório poderia sentir, pois não lhe constava ter cometido qualquer pecado. Ele era um exemplo de manual de um padre venerável. Durante sua estadia na Terra, encaixou-se na descrição em cada particular: os longos cabelos brancos, a voz trêmula de um ancião, a pureza moral, Primeira Classe.

Enclausurado, de Ian McEwan

Um ano com lançamento de Ian McEwan é sempre um bom ano. Enclausurado tem como narrador um feto.  Se Machado de Assis criou um autor defunto, McEwan tratou de nos apresentar um autor nascituro, ainda inominado. Poderia perfeitamente se chamar Hamlet, já que McEwan parece trazer para a Londres de hoje a história de Shakespeare. Gertrude (Trudy) e Claude planejam o assassinato do marido/irmão, John Cairncross, para se apoderarem do imóvel da família, uma velha casa em ruínas mas localizada num ponto da cidade que a faz valer alguns milhões. O Hamlet intra-uterino de McEwan é consciente. É como se, de dentro de sua mãe, dispusesse de uma boa biblioteca ou, vá lá, acesso ao Google: ele reconhece ser um felizardo, já que, de todas as opções possíveis, será um europeu ocidental. Claro, nem tudo é perfeito: não terá os benefícios sociais nem o poderoso fundo soberano de um norueguês, nem nascerá na ensolarada decadência italiana (e sua culinária) ou na França, com seu amor

Bob Dylan

Estava em Roma na semana passada quando foi anunciado o nome de Bob Dylan para o Nobel de Literatura de 2016, pela Academia Sueca. Não é correto dizer que foi uma grande surpresa pois, afinal, seu nome já apareceu como favorito na lista da Ladbrokes há alguns anos. Desta vez, no entanto, não aparecia entre os 10 mais apostados (ainda que, na madrugada de 12 para 13 de outubro, seu nome tenha despontado para quarto lugar - deve haver algum vazamento nesse negócio). Martin Amis, Michael Cunningham e Salman Rushdie foram os primeiros - que eu saiba - a elogiar a decisão. Dylan é um grande músico e, como tal, um grande poeta, dizem. Em Tangled Up in Blue, por exemplo: Then she opened up a book of poems   And handed it to me   Written by an Italian poet From the thirteenth century Will Self, por outro lado, disse que Dylan terá a grande chance de imitar Sartre e, felizmente, recusar o prêmio... O que dizer? Todos os leitores do mundo parecem ter o poder-dever

Bellow e Roth

Às vésperas do anúncio do Nobel de Literatura de 2016, um excelente texto de Isabel Lucas, no caderno Ipsilon, que pode ser lido aqui. Um trecho:   Philip Roth e Saul Bellow conheceram-se em Chicago em 1956. Roth era estudante na Universidade de Chicago, e Bellow "um dos seus entusiasmos literários", como o definiu em  Os Factos. Foi em Chicago que leu  Augie March  e viu um exemplo do génio de Bellow, para ele “o grande libertador do tradicional confinamento da literatura judaica”, lê-se em Roth Unbound . Entre outras coisas, foi também evidente que “a experiência judaica podia ser parte da literatura americana”. Zachary Leader, autor da biografia  The Life of Saul Bellow , cuja primeira parte foi publicada em 2015 (sem tradução em Portugal), referiu agora ao PÚBLICO que para Bellow era claro que como escritor “estava em melhor posição enquanto judeu na América do que um judeu na Europa”. Porquê esta afirmação? “Apesar dos alertas e das suspeitas em relaçã

Arturo Pérez-Reverte

Para quem pensa que algumas coisas que se passam são exclusividades destas terras... Trecho da entrevista de Artur Pérez-Reverte: A boa e velha Europa dos direitos do homem, que iluminou o mundo, essa Europa que nasce na Bíblia, no Talmude, no islão, em Homero e em Dante, em Virgílio, Camões, Cervantes, Voltaire e Rosseau, na Enciclopédia e na Revolução Francesa, essa Europa foi condenada à morte. E isso é um problema de educação. Estamos a criar gerações de jovens que carecem de mecanismos culturais e históricos que lhes permitam saber quem são. Estamos a criar órfãos culturais. Todo o sistema educativo europeu está feito para esmagar a inteligência. Para a igualar à mediocridade. Mas alguma vez foi diferente? Antes era diferente, sim. Antes, o miúdo brilhante era apoiado, potenciado, porque sabiam que dali sairia a elite do futuro. Aqueles que poderiam iluminar os que o não são. Mas isso não era característica de um ensino mais elitista? Talvez o nível mé

Autobiografia de Nicolae Ceausescu, de Andrei Ujica

Vinte e cinco anos da História romena. O blog tem uma queda por filmes sobre a queda do bloco soviético. Este é uma colagem de filmes oficiais , desde o funeral de Gheorghe Gheoghiu-Dej, em 1965 - subiu ao poder com o fim da Segunda Guerra -, até a execução de Nicolau e Elena, no Natal de 1989.  Para quem acompanhou, pela TV de então e pelas revistas americanas (entre 1988 e 1989 a Time, a cada número, trazia uma grande reportagem sobre o país que havia derrubado o comunismo naquela semana).   Ceausescu , no início, foi visto como um lí der sofisticado e mo dernizante e que, como Tito, buscava independência de Moscou. No final, foi talvez o mais ridículo e sanguinário ditador entre os tantos da região. O culto à sua personali dade atingiu níveis que hoje nos parecem caricatos, nos remetendo à Coréia do Norte. A partir das 2 horas de filme, a situação de Ceausescu começa a mudar, e surgem os primeiros questionamentos públicos. M eia-hora depois, aparece Gorbach ov, e