Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de 2015

Alberto Manguel, diretor da Biblioteca Nacional

Atualmente em Nova York, onde está lecionando um semestre em Princeton e em Columbia sobre Borges (2016 é o 30º ano de sua morte), Alberto Manguel é o novo diretor da Biblioteca Nacional argentina. Borges esteve à frente da instituição de 1955 a 1973.

2015

A esta altura, já dá para entrar na onda das intermináveis listas de fim de ano. Ano dedicado principalmente aos clássicos - o segundo volume da Comédia Humana de Balzac e o Purgatório e o Paraíso de Dante. E descobri que, quando se escreve (ficção) não se consegue ler tanto. Difícil é saber se vale a pena... Mas, em resumo, os destaques do ano: Ficção: Amos Oz ( Judas ) e Gospodinov ( The Physics of Sorrow , ainda inédito no Brasil). E, com atraso de mais de década, o excelente Desonra do sul-africano Coetzee. Manuel Mira e o romance  El olivo que no ardió en Salónica estão à espera de uma editora brasileira. Brasil: Alberto Mussa e a história do Rio em A primeira história do mundo. Também gostei do pesadelo imaginado por Miguel Sanches Neto - A segunda pátria. Biografias: a do Philip Roth, escrita pela Claudia Pierpoint Roth (sem parentesco com o biografado).

A lição, de Kristina Grozeva e Petar Valchanov

Um filme muito bom que você provavelmente não viu, mas que já está disponível - até! - na TV a cabo. Uma professora dura, esposa de um fracassado alcoólatra, mãe de uma menininha, filha de um pai que vive com uma mulher bem mais nova... A rigorosa professora Nade trabalha numa escola tentando fazer com que seus desanimados e perdidos alunos aprendam inglês, e se mostra implacável com uma situação de furto em sala de aula. Mas ela é professora, ganha mal (acham que isso não acontece na Europa?) e faz bicos com traduções. Uma sucessão de desgraças surge a partir daí, num filme que não tem qualquer preocupação com fotografia ou trilha sonora - e que talvez, por isso mesmo, passe uma incômoda sensação de realismo. Não há dramalhão, mas uma angustiante luta de uma mulher para salvar a própria casa das besteiras do marido irresponsável. A questão, a partir daí, é: como fica a rígida professora, cheia de princípios, diante desse caos que a atinge? O desfecho da história é d

Woody Allen aos 80

Em 1º de dezembro de 1935, nasceu Allan Stewart Königsberg. Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, Manhattan, A Era do Rádio, Todos dizem eu te amo, Match Point, Desconstruindo Harry, Meia-noite em Paris...

A falsa amante, de Balzac

As famílias ricas vivem atualmente entre o perigo de arruinar os filhos se os têm em grande número, e o de se extinguirem se se limitarem a um ou dois - singular resultado do Código Civil, que Napoleão não previu. Balzac era conservador; hoje seria chamado de reacionário. No caso - o Código Napoleão acabou com os privilégios da primogenitura, resquício medieval capaz de preservar o poder e a riqueza da aristocracia. Não é a primeira vez que vemos sua repulsa ao novo regime de forma tão clara. Clementina du Rouvre é casada com o rico imigrante polonês Adam Mitgislas Laginski, que além de rico é incrivelmente feio - há duas espécies de poloneses, como há duas espécies de ingleses. Quando uma inglesa não é muito bela, é horrivelmente feia, e o conde Adão pertence à segunda categoria.  Tadeu Paz é o amigo também polonês de Adam, a quem deve favores e evita qualquer envolvimento com a assanhada Clementina. A ponto de inventar uma "amante", uma atriz de circo, Má

Ian McEwan sem utopia

  O sr. viveu muito próximo da ameaça do fanatismo religioso quando foi decretada a fatwa contra seu amigo Salman Rushdie (foi condenado à morte pelo aiatolá iraniano Ruhollah Khomeini), a quem o sr. escondeu durante um tempo em uma casa de Cotswolds. Foi o momento em que o Ocidente se deu conta de que o século XXI não estaria livre dessas ameaças? R.  Nos anos oitenta, para muitos de nós que moramos na Europa pós-cristã, a religião nunca entrava na conversa. Era algo que a gente fazia há 150 anos, antes de Darwin. Mas o que aconteceu com Salman, primeiro, e sobretudo o que veio depois com o 11 de setembro, nos colocou frente a frente com o poder da fé religiosa. P.  O que o sr. pensa quando lê sobre as meninas londrinas que fogem de casa para se unir à jihad? R.  É um mistério total. Uma das noções mais destrutivas da história do pensamento humano é a utopia. A ideia de que é possível formar uma sociedade perfeita, seja nesta vida ou em outra posterior, é muito destrutiva

Fetichismo literário

Pratico o fetichismo literário: adoro visitar as casas, túmulos, bibliotecas dos escritores que admiro, e se além disso pudesse colecionar suas vértebras, como fazem os crentes com os santos, o faria com muito gosto. (Eu lembro que, em Moscou, fui o único, no grupo de convidados, a fazer sem me desesperar a infinita peregrinação tolstoiana, o ínico a farejar com prazer desdde as babuchas e samovares até a última pena de ganso. Vargas Llosa, A orgia perpétua. Alfaguara.

70 anos de Nuremberg

O filme é de 1961, mas os julgamentos de Nuremberg tiveram início em 20 de novembro de 1945.  Churchill era contra - por ele, fuzilava todos em questão de minutos.  Expôs sua opinião em Yalta, mas Roosevelt achava importante para os americanos levar os criminosos à justiça; Stalin via nos julgamentos uma excelente forma de propaganda do regime. Para Churchill, era um sinal imperdoável de hipocrisia. Foi o que revelaram os diários de Guy Liddell, diretor de contra-espionagem do MI5 - que vieram a público em 2012.

Estudo de mulher, de Balzac

Os principais personagens de toda Comédia estão neste curtíssimo texto: Eugène de Rastignac, que será de fundamental importância em O pai Goriot e o famoso médico, o doutor Horace Bianchon, seu narrador. Até aqui, o primeiro narrador personagem de Balzac. A "ideia" (mais que propriamente um enredo) central - um jovem comete uma grosseria, e tenta se desculpar do ato. Rastignac escreve uma carta à sua amante, a Sra. de Nucingen (filha de Goriot). Todos sabem dessa ligação - no Baile de Sceaux , já se comentava com bastante ironia... Mas a carta acaba nas mãos da sra. de Listomère, que se faz de surpresa - mas está achando tudo muito bom. Mas leva um balde de água fria: - Senhor, o silêncio será de sua parte a melhor das escusas. Quanto a mim, prometo-lhe o mais absoluto esquecimento, perdão de que é pouco merecedor. - Minha senhora - disse Eugênio com vivacidade -, o perdão é inútil quando não há ofensa. A carta - acrescentou em voz baixa - que a senhora receb

A sra. Firmiani, de Balzac

Não se sabe exatamente o que Balzac queria com esse A sra. Firmiani . Para Rónai, "um romance não acabado, talvez nem começado". A ação de Otávio de Camps, influenciado pela sra. Firmiani nos é relatada; ficamos sabendo do desfecho, mas isso é o que menos importa. Balzac descreve uns tipos por aí que, descobrimos, estão entre nós até hoje: O Observador - fala como um profeta. Temos de aceitar suas palavras, suas anedotas, suas citações como verdade, sob pena de passarmos por um homem sem instrução e sem meios.  O Contraditor - essa espécie de gente faz a errata de todas as memórias, retifica todos os fatos, aposta sempre cem contra um, tem certeza de tudo. Os Plantadores - gente habituada a se dar conta de tudo e a fazer negócios como os camponeses. Tudo isso na rue du Bac, onde a sra. Firmiani tinha seu palacete. Hoje: Rue du Bac, Paris

Sergio Augusto e os 100 anos da Metamorfose

Antes de submeter A Metamorfose à apreciação de uma revista editada por Robert Musil, Kafka a leu para um grupo de amigos. Todos riram à beça. Como não rir de uma insólita tragicomédia como a vivida por Gregor Samsa? Como sempre, um texto imperdível de Sergio Augusto, sobre o centenário da Metamorfose, de Kafka, que pode ser lido  aqui.  Um dos meus favoritos. Sergio Augusto lembra do desprezo que a esquerda lhe conferiu - satanizado na Rússia e no leste europeu, sem espaço numa sociedade na construção do socialismo... Mas ainda prefiro O Processo. Leia Mais: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,bicho-papao,10000000952 Assine o Estadão All Digital + Impresso todos os dias Siga @Estadao no Twitter Leia Mais: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,bicho-papao,10000000952 Assine o Estadão All Digital + Impresso todos os dias Siga @Estadao no Twitter

A paz conjugal, de Balzac

A aventura narrada nesta cena passou-se em fins de novembro de 1809, momento em que o fugaz império de Napoleão atingia o apogeu de seu esplendor. As fanfarras da vitória de Wagram ecoavam ainda no coração da monarquia austríaca. Não se engane. Balzac não deixa isso passar em vão: Naquele tempo os corações eram nômades como os regimentos. De um primeiro a um quinto boletim do Grande Exército, uma mulher podia ser sucessivamente amante, esposa, mãe e viúva. Seria a perspectiva de uma viuvez próxima, de uma dotação ou a esperança de usar um nome destinado à história que tornaram os militares tão sedutores para as mulheres? Neste pequeno texto, Balzac nos coloca dentro de um dos grandes bailes do Império e nos apresenta ao conde de Soulanges, cortejando (oh, adorável século XIX) a Mme. Vaudremont que, por sua vez, parece mais afeiçoada a Marcial. Este, por sua vez, não tira os olhos de uma desconhecida mulher de azul. Aposta com o coronel Montcornet que conseguiria tira

Novo livro de Padura

Daniel Kaminsky levaria vários anos para se habituar ao barulho esfuziante de uma cidade que se levantava sob a mais indisfarçada algaravia. Havia descoberto logo que ali tudo se tratava e se resolvia aos gritos, tudo rangia por causa da ferrugem e da umidade, os carros avançavam entre as explosões e o ronco dos motores ou os longos bramidos das buzinas, os cães latiam com ou sem motivo e os galos cantavam até a meia-noite, enquanto cada vendedor anunciava sua presença com um apito, um sino, uma corneta, um assovio, uma matraca, uma flauta de bambu, uma quadrinha bem rimada ou um simples berro. Ele tinha encalhado numa cidade na qual, ainda por cima, toda noite, às nove em ponto, retumbava um canhonaço sem que houvesse guerra declarada nem muralhas para fechar, e onde sempre, sempre, em épocas de bonança e em momentos de aperto, alguém escutava música, e cantava Aqui , trecho do novo romance de Leonardo Padura, Hereges, que acaba de ser lançado no Brasil.

Mencken

ISTO E AQUILO O principal conhecimento que se adquire lendo livros é o de que poucos livros merecem ser lidos. O cínico é aquele que, ao sentir cheiro de flores, olha em torno à procura de um caixão. Nunca superestime a decência da espécie humana. A fé pode ser definida em resumo como uma crença ilógica na ocorrência do improvável.  Pode ser um pecado pensar mal dos outros, mas raramente será um engano.  É difícil acreditar que um homem esteja dizendo a verdade quando você sabe muito bem que mentiria se estivesse no lugar dele.  Quanto mais envelheço, mais desconfio da velha máxima de que a idade traz a sabedoria.  Pelo menos numa coisa homens e mulheres concordam: nenhum deles confia em mulheres.  De fato, é melhor dar do que receber. Por exemplo: presentes de casamento. Finalmente passou a ser legal que uma mulher católica recorra à matemática para evitar a gravidez, mas continua sendo-lhe proibido recorrer à física ou à

As torradas de Proust

O manuscrito de Proust E as madeleines seriam, afinal, torradas.  O primeiro dos cadernos,  Le manuscrit du pain grillé  (“o manuscrito do pão torrado”, em tradução livre), contém a primeira de todas as versões do “episódio da madalena”, datada de 1908 – é a versão da torrada com mel. No segundo caderno, Proust recomeça, dessa vez com um  biscotte . No terceiro, intitulado  Le manuscrit des Petites Madeleines  (“o manuscrito das pequenas madalenas” junta duas vozes: a de Proust e a do seu copista, num diálogo sobre o trabalho da escrita. "Estes três cadernos inéditos permitem voltar à genealogía literária do momento mais emblemático do universo proustiano", diz a editora em comunicado.  No seu  site , as Éditons des Saint-Pères explicam também o seu “amor pelos manuscritos, os objectos raros e preciosos” da literatura: “Enquanto o digital avança, nós dedicamo-nos a restaurar a magia da escrita enquanto veículo de um acesso mais intimo e comovente à obra e ao seu

Frick Collection, NY, 2015

Cresci em Nova York, que tem mais Vermeers (oito) do que qualquer outra cidade no mundo. Do que qualquer país (há apenas sete na Holanda). Eu nunca vivi numa cidade sem um Vermeer. É assim que termina o poema Why I love Vermeer, do americano Lloyd Schwartz. E, assim sendo, seu museu favorito em NY é a Frick Collection, na 5ª Avenida com 70, que possui em seu acervo três Vermeers. Considerado um dos melhores museus pequenos do mundo, a Frick vale a visita mas, como ocorre na Morgan Library, passa despercebida e esnobada pela turba de turistas. Melhor assim. Além de Vermeer, encontramos Rembrandt, Van Dycks, Goyas. Há uma sala para Fragonard. Os italianos da Renascença, como Giovanni Bellini, são aquisições de sua filha (ele não gostava). Frick apreciava também os ingleses Turner e Constable. Henry Clay Frick (1849-1919) não era um sujeito fácil. Foi considerado o homem mais odiado da América, devido ao seu notório antissindicalismo e sua participação na repressão a

Dante

A obra de Dante tem uma profundidade estética e intelectual que permite encontrar quase qualquer coisa que se possa procurar nela. Também tem uma espécie de perfeição artística, que é algo milagroso. Numa perspectiva intelectual isso pode explicar-se pela grande inteligência e pela grande capacidade de Dante para assimilar os conhecimentos da sua época e os transformar em poesia, encontrando vínculos entre os diferentes temas que aborda. Mas a beleza da  Divina Comédia  não se pode explicar por razões intelectuais ou técnicas. Tem algo de música, tem algo visual, tem uma beleza conceptual também. Todos esses elementos juntos são, cada um, extraordinários, mas tampouco chegam para explicar o conjunto tão extraordinário da obra. É a obra mais milagrosa da literatura universal . (Alberto Manguel em entrevista ao Público - Ipsilon -  aqui. )

Morgan Library, NY, 2015

Finalmente consegui conhecer a incrível The Morgan Library , em Nova York (Madison com 36), sem dúvida uma das mais bonitas e instigantes que existem.  De quebra, conseguimos ver o último dia da exposição comemorativa dos 150 anos da edição de Alice no País das Maravilhas - não se esqueçam: Monteiro Lobato foi o primeiro a traduzi-la para o Brasil - e outra, sobre Ernest Hemingway entre guerras.  E a Morgan é, além de tudo, uma demonstração da combinação de uma arquitetura do século XIX e do início do XX (o prédio da biblioteca é de 1902-1906) com o que de mais moderno existe em arquitetura - o anexo é assinado por Renzo Piano. Piano foi contratado em 2000 para criar um espaço que integrasse a residência do banqueiro Pierpont Morgan (do séc. XIX), a biblioteca e um anexo, criado nos anos 20, com o crescimento da coleção. O resultado é este aqui: O espaço se tornou público a partir de 1924, e é ponto de romaria para qualquer bibliófilo. Nas prateleiras, obra

Um texto de Svetlana Alexievich

O site (fundamental) Words Without Borders publicou em abril de 2005  The wondrous deer of the eternal hunt  (em inglês), sobre a viúva de um sobrevivente de um campo de trabalho stalinista. Inédita nessas bandas, provavelmente não por muito tempo. O fim do homem soviético foi publicado este ano pela editora Porto, de Portugal. Não a conheço. Mas fiquei curioso. Abstraindo as injustiças com Roth e, em menor escala, outros ficcionistas, é interessante conhecer novos nomes (para nosso universo paralelo no Brasil). Além disso, há jornalismo e jornalismo, e muitos mereceriam o prêmio - Mencken, John Reed, John Hershey e companhia. Será o caso?

Livrarias: Rizzoli (NY)

A volta da Rizzoli, na  1133, Broadway, três quarteirões do Madison Square Park, entre as ruas 25 e 26 .

A literatura europeia do século XX

Basicamente, é isso. (Trampantojo, por Max. El País do dia 2/10)

Uma dupla família, de Balzac

Neste Uma dupla família Balzac usa o que hoje chamamos de flashbacks : a narrativa se inicia com o rico Roger e a jovem operária Carolina Crochard. Terão dois filhos. Na segunda parte, M. de Ganville, advogado promissor, convidado para o tribunal (desde o século 19 parece melhor ser um "magistrado do ministério público" do que um simples advogado), casa-se, por interesse, com a jovem e bela Angélica Bontemps.  E logo percebemos que estamos o tempo todo a falar de Roger Granville - a tal dupla família do título.  Angélica mostra-se fria, austera, uma verdadeira beata, o que torna a vida de Roger insuportável: Uma manhã, o pobre Granville notou, com tristeza e dor, todos os sintomas da carolice em sua casa. Encontram-se pelo mundo certas sociedades nas quais existem os mesmos efeitos  sem que sejam produzidos pelas mesmas causas. O tédio traça em torno dessas casas infelizes um círculo de ferro que encerra o horror do deserto e o infinito do vácuo. Um lar não é então um

Mencken e o Filósofo

O FILÓSOFO Não há registro na história humana de um filósofo feliz: só existem nos contos da Carochinha. Na vida real, muitos cometeram suicídio; outros mandaram seus filhos porta afora e surraram suas mulheres. Não admira. Se você quiser descobrir como um filósofo se sente quando se empenha na prática de sua profissão, dê um pulo ao zoológico mais próximo e observe um chimpanzé na sua chatíssima e infindável tarefa de catar pulgas. Ambos - o filósofo e o chimpanzé - sofrem como o diabo, mas nenhum dos dois consegue ganhar. O Livro dos Insultos

Elias na Corvus Review

Acaba de sair a edição da  Corvus Review , com meu conto Elias. De Ruse, passando pelo Rio e chegando a Milwaukee. O número 3 (Falls) pode ser lido  aqui. Já posso dizer que sou um autor traduzido...

A Vendetta, de Balzac

— Ah! Vocês não são mais corsos — exclamou Bartolomeu, numa manifestação de desespero. — Adeus. Em outros tempos eu os protegi — acrescentou em tom de censura. — Sem mim tua mãe não teria chegado a Marselha — disse ainda, dirigindo-se a Napoleão, que permanecia pensativo, o cotovelo apoiado sobre o pano da chaminé.  — Em consciência, Bartolomeu — respondeu Bonaparte —, não te posso acobertar com minha proteção. Tornei-me o chefe de uma grande nação, sou o chefe da República e devo fazer cumprir as leis.  — Ah!, ah! — fez Bartolomeu.  — Mas posso fechar os olhos — continuou Bonaparte. — O preconceito da vendeta impedirá por muito tempo o reinado da lei na Córsega — acrescentou, falando consigo mesmo. — É preciso contudo destruí-lo a qualquer preço .  A Comédia prossegue.   Em  1800, uma família de refugiados abandona a Córsega e chega a Paris. Bartolomeo di Piombo, sua esposa e sua filha deixam para trás a violenta ilha -  as famílias Piombo e Porta se chacinam mutuam

Alberto Savarus, de Balzac

Albert Savarus é um advogado parisiense que acaba parando em Besançon. Balzac explica que "nenhuma cidade oferece resistência mais surda e muda ao progresso". E, pior:  De Victor Hugo, de Nodier, de Fourier, as glórias da cidade, não se fala, ninguém lhes dá atenção. Paulo Rónai avisa - Savarus é o próprio Balzac, "basta ler o retrato físico de Alberto, que, no decorrer da novela, aparece com todos os traços, idealizados, do romancista, vestindo-lhe até o famoso robe de chambre"; na novela de Savarus aparecem alguns personagens da  Comédia .  Uma das grandes famílias de Besançon é a dos Watteville. A mulher do barão é uma jararaca controladora; a filha é Rosália, que logo se apaixona pelo advogado. Aproveita-se do namoro entre os respectivos criados e passa a ler as cartas de Alberto para a Duquesa Argaiolo. Os dois têm um caso.  Alberto escreve um conto - que nos é "recontado" por Balzac, O ambicioso por amor.  Rosália escreve uma c

Circunferência em toda parte e centro em lugar nenhum

INTERNET: Um lugar que, como o Deus dos estudiosos medievais, tem sua circunferência em toda parte e seu centro em lugar nenhum. Como a lua de Ariosto, é um reino onde pode ser encontrado tudo o que esquecemos, e nos alivia da responsabilidade de lembrar de coisas por conta própria. Seus defensores esperam que, eventualmente, a internet vai aliviar-nos de pensar completamente. (Alberto Manguel para seu Dicionário )

António Lobo Antunes ataca mais uma vez

Obrigado por receber-nos em sua casa aqui em Lisboa, a cidade de Pessoa. Não sou admirador de Pessoa. Como assim!?!? O Livro do Desassossego...! O livro do não se o quê que me aborrece de morte. A poesia do heterônimo Álvaro de Campos é uma cópia de Walt Witman; a de Ricardo Reis, de Virgílio. Questiono-m se um homem que nunca fodeu pode ser um bom escritor. Se você chegou até aqui e quiser ler a entrevista completa publicada na semana passada no El País, clique  aqui. Obs.: agradecendo a dica do leitor José Alexandre Ramos, segue o link para a entrevista em português,    aqui.

Mapa mundi

O mundo literário, na visão de um artista, Martin Vargic, de 17 anos. Ele não esconde sua preferência pela prosa de ficção. A matéria completa, em inglês,  aqui.

Um golpe de mestre, de Reha Çamuroglu

  Um golpe de sorte Reha Çamuroglu Tradução de Marina Mariz Sá Editora, São Paulo, 2011, 130p.   Sultão Vermelho - era com essas duas palavras que todos os adversários do sultão - gregos, armênios, árabes e os Jovens Turcos - o descreviam. Aos sussurros, eles falavam de seus porões de tortura, dos cadáveres que a maré trazia pela manhã e, com ódio, medo e às vezes com uma inveja que não conseguiam ocultar, eles se queixavam desse homem que comandava o império há trinta anos. Contudo, Anna tinha razão. Todos eles pertenciam à elite. Ou tinham bons negócios que arrecadavam muito dinheiro, ou eram filhos de paxás e nobres. Charles via e sentia claramente que as camadas populares amavam o Sultão Vermelho, enquanto a elite - inclusive nos círculos em torno do monarca - o odiava profundamente.   Em muitos casos, a literatura de um país se resume, para o público externo, a um grande nome. O Brasil mesmo, lá fora, foi reduzido a Jorge Amado e, nos últimos anos, suprema decad

Uma estreia na vida, de Balzac

Pouquíssimo lembrado, o curto romance Uma estreia na vida merece uma leitura mais cuidadosa. Oscar Husson é um homem comum, manso, sem pretensões, modesto e sempre se mantendo, como o seu governo, num justo meio. Não causa nem inveja nem desdém. É, enfim, o burguês moderno. Oscar é detestável: pobre com vergonha da mãe, procura fazer carreira, mas tem uma inacreditável habilidade de falar e fazer besteira, que sempre coloca tudo a perder.  Boa parte da narrativa se passa nos coucous, modalidade de transporte ainda explorada por particulares na França. Balzac, aliás, inicia seu romance falando que isso logo fará parte dos "velhos tempos": As estradas de ferro, num futuro já agora não muito distante, deverão fazer desaparecer certas indústrias, modificar algumas outras, principalmente as que concernem aos vários modos do transporte em uso nos arredores de Paris. Também, breve, as pessoas e as coisas que forma os elementos desta cena lhe darão o mérito de um trabalho ar

A Dama Dourada (2015): Simon Curtis

A Dama Dourada provavelmente renderá a Helen Mirren mais uma indicação ao Oscar, no papel de Maria Altman, uma senhora judia que consegue escapar de Viena, deixando para trás a família durante o regime nazista. Há duas questões principais - a história de Adèle Bloch-Hauer, sua tia, modelo de Klimt para seu quadro a dama dourada e do quadro, que foi levado da casa dos pais de Maria pelos nazistas; e a batalha judicial que ocorreu a partir de 1999. Quanto à primeira, vem-me imediatamente o livro de Edmund de Waal, A Lebre com Olhos de Âmbar, que comentamos por aqui. Como no livro, o filme mostra de forma bem evidente que os austríacos não foram exatamente vítimas, mas ativos participantes do regime nazista. A história de Maria Altmann tem ainda um ingrediente especial: ocorreu no momento em que o então presidente da Áustria, Kurt Waldheim, eleito após uma passagem como secretário-geral da ONU, é reconhecido como capitão do Exército com passagem bastante ativa na então Iugoslá