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Uma história politicamente incorreta


Nosso já conhecido H.H. Munro – Saki (1870-1916) volta à Biblioteca, mais uma vez num conto em que os personagens principais são crianças. Do volume 9 do Mar de Histórias.

Em  O Contador de Histórias, um solteirão divide uma cabine de trem com uma senhora e duas crianças – seus sobrinhos - irrequietas e enjoadas. A mulher resolve, então contar uma história:

Em voz baixa e tom confidencial, interrompida aqui e ali por perguntas altas e petulantes dos seus ouvintes, a senhora começou uma história sem movimento e lamentavelmente desinteressante sobre uma menina que era muito boazinha, de quem todos ficavam amigos por causa do seu bom comportamento, e que acabou sendo salva da agressão de um touro furioso por vários salvadores que lhe admiravam o caráter.

As crianças detestaram a história, achando-a idiota. E o solteirão, que a tudo acompanhava, quieto, intervém: parece que a senhora não tem muito jeito para contar histórias. Desafiada, a senhora revida e pede-lhe que conte, então, uma melhor. E ele, então, conta:

Era uma vez uma meninazinha chamada Berta, que era muito boazinha.

Ela era, na verdade, horrivelmente boazinha.

Era tão boazinha que ganhou várias medalhas de bondade, que ela trazia sempre no vestido, seguras por alfinetes. Tinha uma medalha de obediência, outra de pontualidade e uma terceira de bom comportamento. Eram grandes medalhas de metal que tilintavam uma contra a outra quando ela caminhava. Na cidade onde vivia não havia outra criança que tivesse três medalhas, e assim todos sabiam que ela devia ser uma criança extraordinariamente boa.

Todos lhe comentavam a bondade, e o Príncipe do país teve notícia dela, e disse que, por ser tão boa, ela teria licença para passear uma vez por semana no seu parque, perto da cidade. Um parque bonito, onde crianças nunca tinham permissão de entrar, de modo que era grande honra para Berta ser admitida ali.

As crianças começam a se interessar; fazem algumas perguntas e o contador de história entra em alguns detalhes que acabam ainda mais atraindo sua atenção.

Berta passeava por todo o parque e divertia-se muitíssimo, e dizia com seus botões: - ‘Se eu não fosse tão extraordinariamente boazinha, não teria licença de entrar neste belo parque e de ver todas as belezas que contém’ – e as três medalhas tilintavam uma contra a outra enquanto ela caminhava e ajudava a lembrar-se de como era boazinha de verdade. Mas nesse mesmo instante um lobo enorme penetrou sorrateiramente no parque para ver se conseguia apanhar um porquinho bem gorducho para o seu jantar.

E a história parte para o seu desfecho, digamos, pouco edificante:

A primeira coisa que viu no parque foi Berta, que tinha um avental tão branco, que podia ser vista a grande distância. Berta viu o lobo, viu que ele se aproximava dela, e principiou a desejar que nunca houvesse tido licença de entrar no parque. Correu o mais depressa que pôde, e o lobo seguiu-a com enormes saltos e pulos. Berta conseguiu chegar a um grupo de moitas de murta, e escondeu-se na parte mais espessa. O lobo veio farejando entre as moitas, a língua preta pendendo fora da boca e os olhos cinza-claros brilhando de furor. Berta estava terrivelmente assustada, e disse consigo mesma: - ‘Se eu não tivesse sido tão extraordinariamente boazinha, agora estaria sã e salva na cidade’. Entretanto o cheiro da murta era tão forte que o lobo não pôde farejar o esconderijo de Berta, e as moitas tão espessas que ele poderia rondá-las por muito tempo sem avistá-la; assim, pensou em abandonar a busca e contentar-se com um porquinho. Berta tremia muito ao saber que o lobo a rondava tão de perto, farejando por toda parte, e, quando tremia, a medalha de obediência tilintava com as de pontualidade e bom comportamento. O lobo ia embora, quando ouviu o som das medalhas tilintantes, e parou para ouvir melhor; aí elas tilintaram outra vez numa das moitas mais próximas. Ele atirou-se na moita, os olhos cinza-claros a brilhar de furor e triunfo, arrancou Berta do seu esconderijo e devorou-a até o último bocado. Tudo quanto sobrou dela foram os sapatos, uns pedacinhos de roupa e as três medalhas de bondade.

As crianças ficaram fascinadas; era a melhor história que tinham ouvido em toda a vida. A história começou mal – disse a menorzinha das meninas -, mas tem um fim muito bonito.

A tia, indignada: a história não podia ser mais imprópria para crianças. O senhor acaba de solapar o efeito de anos de ensino cuidadoso.

-  Pelo menos mantive-as sossegadas por dez minutos, o que a senhora não seria capaz de conseguir.

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