Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das
cidades, a rua tem alma! Em Benarès ou em Amsterdã, em Londres ou em Buenos
Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora
da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses
enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso
dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. Não paga ao Tamagno para
ouvir berros atenorados de leão avaro, nem à velha Patti para admitir um fio de
voz velho, fraco e legendário. Bate, em compensação, palmas aos saltimbancos
que, sem voz, rouquejam com fome para alegrá-la e para comer. A rua é generosa.
O crime, o delírio, a miséria não os denuncia ela. A rua é a transformadora das
línguas. Os Cândido de Figueiredo do universo estafam-se em juntar regrinhas
para enclausurar expressões; os prosadores bradam contra os Cândido. A rua
continua, matando substantivos, transformando a significação dos termos,
impondo aos dicionários as palavras que inventa, criando o calão que é o
patrimônio clássico dos léxicons futuros. A rua resume para o animal civilizado
todo o conforto humano. Dá-Ihe luz, luxo, bem-estar, comodidade e até
impressões selvagens no adejar das árvores e no trinar dos pássaros.
*
Flanar
é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser
artístico. Daí o desocupado flaneur ter sempre na mente dez mil coisas
necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas.
Janeiro vem sendo, há
alguns anos, um mês de leitura de clássicos brasileiros, em especial, cariocas.
Nesta primeira semana, consegui A Alma
Encantadora das Ruas, de João do Rio (1881-1921), que me foi enfaticamente
recomendado por um amigo.
Mulato como Lima
Barreto – que, nas Recordações do
escrivão Isaías Caminha, retrata-o de forma caricata, como o jornalista
Raul Gusmão - e homossexual, como Oscar Wilde
- dandi que usava chapéu coco e monóculo – é um dos maiores cronistas
cariocas pré-modernistas.
No início, uma aula
da história das ruas mais importantes do Centro:
Vede a
Rua do Ouvidor. É a fanfarronada em pessoa, exagerando, mentindo, tomando parte
em tudo, mas desertando, correndo os taipais das montras à mais leve sombra de
perigo. (...) Começou por chamar-se Desvio do Mar. Por ela continua a passar
para todos os desvios muita gente boa. No tempo em que os seus melhores prédios
se alugavam modestamente por dez mil réis, era a Rua do Gadelha. Podia ser
ainda hoje a Rua dos Gadelhas, atendendo ao número prodigioso de poetas
nefelibatas que a infestam de cabelos e de versos. Um dia resolveu chamar-se do
Ouvidor sem que o senado da câmara fosse ouvido. Chamou-se como calúnia, e
elogia, como insulta e aplaude, porque era preciso denominar o lugar em que
todos falam de lugar do que ouve; e parece que cada nome usado foi como a
antecipação moral de um dos aspectos atuais dessa irresponsável artéria de
futilidade.
Como cronista,
algumas de suas constatações são válidas ainda hoje: Um homem absoluta, totalmente notável só é aceitável através do cartão
postal – porque afinal fala de si, mas fala pouco.
Os mendigos também já
se espalhavam pelas ruas do Rio no início do século passado: A mendicidade é a exploração mais regular,
mais tranqüila desta cidade. Pedir, exclusivamente pedir, sem ambição aparente
e sem vergonha, assim à beira da estrada da vida, parece o mais rendoso ofício
de quantos tenham aparecido; e a própria miséria, no que ela tem de doloroso e
de pungente, sofre com essa exploração.
João do Rio escreveu
em plena reforma urbana promovida por Pereira Passos. Uma crônica sobre o Rio –
que talvez não tenha sido em nenhuma outra ocasião um personagem tão central de
uma obra literária - e seus tipos mais simples e comuns, mas nem por isso sem
interesse: os caçadores, os tatuadores, os urubus (hoje os papa-defuntos), os
“mercadores de livros”. E, como que num prenúncio, os “vendedores de ópio”. Os personagens
que retrata são aqueles esquecidos pela “onda civilizatória”.
Comentários
Postar um comentário