Pular para o conteúdo principal

Conto da semana: Nikolai Karamzin


O conto da semana é de Nikolai Karamzin e inaugura a incrível Nova Antologia do Conto Russo organizada por Bruno Barretto Gomide. A tradução é de Natalia Marcelli de Carvalho e Fátima Bianchi.


Karamzin é pouco conhecido, não apenas no Brasil, mas no Ocidente como um todo. Na Rússia, no entanto, é reverenciado como o autor de uma monumental História do Estado Russo.  Nobre de origens tártaras, teve grande reputação também como jogador de cartas; lia de filosofia alemã aos romances franceses da época. Em sua única viagem à Europa, consta que bateu um papo em Konigsberg com Kant e assistiu aos discursos de Robespierre e Mirabeau na Assembleia Nacional, em Paris. Essa viagem originou as Cartas de um Viajante Russo, e foi catapultado à condição de líder do sentimentalismo russo. 

Seu conto mais conhecido é esse Pobre Liza, tido como uma obra fundamental da ficção russa, em que uma camponesa é seduzida e abandonada por Erast e que ao final se atira de uma ponte em Moscou. Eis seu início:

É provável que nenhum habitante de Moscou conheça tão bem quanto eu os arredores desta cidade, porque ninguém costuma ir ao campo mais que eu, ninguém vagueia mais que eu, sem plano, sem rumo - aonde os olhos levam -, por seus prados e bosques, por suas colinas e planícies. Todo verão encontro lugares novos e agradáveis, ou novas belezas nos antigos. O narrador fala de seu conhecimento dos arredores rurais de Moscou tal como João do Rio fala do centro urbano de sua cidade.

Liza perderá toda sua inocência; na verdade, passará a pensar cada vez mais em Erast. O amor platônico havia cedido lugar a sentimentos dos quais ele não podia se orgulhar. No final, ela será "trocada"; Erast deve ir à guerra. Não quer ficar em Moscou - posso - respondeu ele -, só que a custo de uma grande desonra, de uma grande mancha em minha honra. Todo mundo haverá de me desprezar e desviar-se de mim, como de um covarde.

Ele vai - Liza o espera. A guerra acaba. Mas, certo dia em Moscou, encontra-o, mas: as circunstâncias são outras; agora estou casado. Deves deixar-me em paz e, para o teu próprio bem, esquecer-me.

Não se trata, evidentemente, de um heroi, mas tampouco de um vilão. Erast é apenas um fraco, o "homem supérfluo", como bem colocam as tradutoras. E esta falta de "veredito" pode ser considerado o diferencial deste texto em relação aos outros da época, com temática semelhante. Não é a riqueza que os afasta - ainda que Erast tenha se casado com uma viúva rica, depois de ter perdido toda a sua fortuna - mas sim as tais 

O conto fez imenso sucesso na Rússia. Pushkin se baseou neste conto para seu A Senhorita Camponesa, que integra os Contos de Belkin. Em certa medida, me parece que também se pode encontrar ecos de Liza em Anna Karenina.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei...

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa...

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n...