“o meu pai pagava ainda a ousadia de se chamar afonso. afonso segundo um rei, mas sobretudo em semelhança ao senhor da casa a que servíamos, uma ousadia disparatada, um sarga chamado afonso, um verdadeiro familiar da vaca como se viesse de rei. quem não tinha do que se honrar, que diabo honraria aludindo a tal nome, perguntavam as pessoas ocupadas com nossa vida. dom afonso, o da casa, era-o por herança e vinha mesmo das famílias de sua majestade, com um sangue bom que alastrava por toda a sua linhagem. nobres senhores do país, terras a perder de vista, vassalos poderosos, gente esperta das coisas do nosso mundo e de todos os mundos vedados. por isso, esqueciam-se quase sempre de que ele, o meu pai, se chamava afonso, e só lhe chamavam sarga, o da sarga, como ele e ela, como um casal. à minha mãe chegavam a dizer que fora à vaca que ele fizera os filhos, e ela revoltava-se. era sempre ela quem barafustava furiosa até que o meu pai viesse e impusesse o juízo e a calma” (p. 13).
Este é o primeiro livro do autor português nascido em Angola publicado no Brasil. Desconfiei muito dele: pontuação, digamos, “própria”; abolição de maiúsculas (o próprio autor escreve seu nome desta forma), tudo com cara de um livro ininteligível, daqueles que a linguagem é mais interessante que o enredo.
Mas não é. Como o autor mesmo disse, esta técnica por ele usada tem como objetivo imprimir uma velocidade ao texto, aproximando-o da narrativa oral (a linguagem do livro é popular e antiga).
Neste ambiente miserável, a vida é dominada pelo senhor do castelo, dom afonso, que tem predileção pelas moças bonitas. A família serapião é conhecida como os sargas (uma vaca de estimação); é tamanho o carinho que tem pelo animal que não apenas são conhecidos como os sargas, como há entre as pessoas a convicção de que os filhos do Afonso o são com ela, e não com a esposa do aldeão. Afonso tem três filhos: baltazar, aldegundes e brunilde, que vivia prestando “favores” a dom afonso. seu amigo, Dagoberto, procura se satisfazer com Teresa diaba – como todo o povoado, aliás.
Baltazar casa-se com a mais bela que já existiu, ermesinda. No entanto, as constantes visitas que dom afonso exige que ela lhe faça acabam por enlouquecer o próprio marido, com seu ciúme absolutamente paranóico. Como em Dom Casmurro, não há em momento algum a revelação da traição.
O tema central, no entanto, não é o ciúme, mas a violência doméstica. O pai de baltazar matou sua mãe. O próprio baltazar irá destruir a beleza de ermesinda, movido pelo ciúme descontrolado – pus a mão na cara de ermesinda e prometi arrancar-lhe olho algum se me pesasse a cabeça dia inteiro passado. Dona Catarina, como Baltazar mergulhada em ciúmes, ainda se pode dar ao “luxo” de humilhar as mulheres que ficam com seu marido – expediente que não está disponível a Baltazar. Este, por sua vez, via-se na missão de educar ermesinda. Amar tanto a mulher que “lhe parte a pancadas” não é algo que tenha ficado para os livros de História medieval...
O livro rendeu ao autor o Prêmio Literário José Saramago de 2007. Na Flip de junho, em Paraty, será lançado a máquina de fazer espanhóis. Parece que, com a morte de Saramago (fã deste livro, por sinal) abriu-se espaço, nas editoras brasileiras, para a nova geração de autores portugueses, até então desconhecidos por estas bandas.
Abriu-me o apetite.
ResponderExcluirAbraço.
Vale a pena ir ao site www.valterhugomae.com
ResponderExcluirSugiro que ao comentar um livro, sejam informados a editora , o numero de paginas e a data da edição quando possíveis.
ResponderExcluirEste livro reune horro e poesia em tempo espaço imaginado nas bordas do pré- humano. Achei genial. Muito bom seu comentário sobre valter hugo mãe e sua obra.
ResponderExcluirObrigado, Acácia. Um abraço, Fabio
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