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Serena, de Ian McEwan


Serena
Ian McEwan
Companhia das Letras
Tradução de Caetano W. Galindo
384 p. 


Meu nome é Serena Frome (a pronúncia é Frum) e há quase quarenta anos fui enviada numa missão secreta do Serviço de Segurança britânico. Eu não voltei em segurança. Um ano e meio depois de entrar fui despedida, depois de ter caído em desgraça e acabado com a vida do meu namorado, embora ele certamente tenha tido um pouco a ver com a sua própria queda.

Não vou perder muito tempo com a minha infância e a minha adolescência. Sou filha de um bispo anglicano e cresci com uma irmã numa catedral de uma cidadezinha linda no leste da Inglaterra. A minha casa era simpática, lustrosa, organizada, cheia de livros. Os meus pais gostavam bastantinho um do outro e me adoravam, e eu a eles. A minha irmã Lucy e eu tínhamos um ano e meio de diferença e, apesar de nós termos passado a adolescência brigando uma com a outra, isso não deixou grandes cicatrizes e nós ficamos mais próximas na vida adulta. A fé do nosso pai em Deus era uma coisa  acomodada e razoável, não se metia muito na nossa vida e foi apenas o suficiente para ele conseguir subir tranquilamente na hierarquia da Igreja e nos instalar numa confortável casa do período da rainha Anne. A casa dava para um jardim cercado por muralhas de plantas que eram, e ainda são, muito bem conhecidas por quem entende de jardinagem. Então, tudo muito estável, invejável e até idílico. Nós crescemos dentro de um jardim murado, com todos os prazeres e limitações que isso implica. Você pode ler o primeiro capítulo aqui.

Os livros do Ian McEwan são sempre muito aguardados. Ele já havia recebido o Man Booker Prize de 1998 com Amsterdam, mas ficou mundialmente conhecido com a transposição para as telas do extraordinário Reparação. 



Neste novo romance, aparentemente sobre espionagem, o enfoque é muito diferente de um outro McEwan, O Inocente (que também virou filme), onde ele criou toda uma atmosfera de suspense no pós-guerra - e início da Guerra Fria, em Berlim.

Serena Frome é uma filha de um pastor e leitora compulsiva (que lê tanto Ian Fleming quanto Aleksander Soljenitzin), que acaba contratada pelo MI5 e se envolvendo no campo de batalha cultural da Guerra Fria em Londres,1972. 

Ainda são raras as mulheres no serviço secreto, e ela termina como uma secretária de luxo. Mas, como voraz leitora de ficção, além de muito bonita e atraente, termina como uma opção para um tal Projeto Tentação, que financiava escritores afinados com o lado ocidental do conflito.

E sua primeira missão é contatar um certo Tom Haley, candidato a um doutorado na Universidade de Sussex - e que está precisando de dinheiro. Serena fica fascinada pelos seus contos - conto não vende, ela nos avisa -  e depois por ele próprio, o que é bastante previsível. Tom para de exercer outras funções e empregos para se concentrar exclusivamente ao ofício de escritor. Como ele mesmo diz - de repente, uma linda mulher lhe oferece uma bolsa para que se dedique exclusivamente à criação... tinha que ter alguma coisa de errado... Ele não sabe que está sendo remunerado pelo MI5. E é isso que se quer - o financiado jamais pode saber que está sendo pago para isso.

Como em Reparação, o romance é narrado em primeira pessoa por uma mulher, e também pode ser considerado um romance sobre a literatura - e mais ainda, sobre o ato de escrever, o que fica claro no desfecho desta história. Muito mais que um romance sobre espionagem, ou sobre o MI5 ou ainda a Guerra Fria. O grande tema é a literatura; sobre escritores e leitores.

Quando já estamos preparados para um determinado final; quando tudo parece ter sido desmontado - o primeiro parágrafo do romance já mostra que ela foi demitida, caindo em desgraça com seu namorado -  descobrimos uma carta escrita por Tom - e as mudanças são dramáticas. Como em Reparação, ficamos com a confusão entre o que é real e o que é ficção.

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