Pular para o conteúdo principal

Conto da semana, de Kirill Kobrin

O conto da semana é do russo Kirill Kobrin (1964), atualmente vivendo em Praga. O Último Verão em Marienbad é parte do volume do Best European Fiction 2013 - o segundo de que falamos aqui.


Kafka e Felice estiveram juntos por dez dias em julho de 1916, num hotel em Marienbad. Este período é a inspiração do conto do escritor russo, que se passa, a rigor, dois anos antes. 


Neste verão, Marienbad não está tão cheia de gente como no ano passado: há menos alemães, menos russos, os ricos comerciantes de Istambul com seus fezzes vermelhos quase já se foram. 

O personagem está esperando pela esposa, na fonte de água mineral; ela está atrasada, mas ele não está muito preocupado, já que há alguns anos ele parou de se preocupar com os seus atrasos. E ele passa a divagar, relembrando sonhos, desejos, a situação da Europa e seus Impérios já em desmoronamento.

Mas só descobrimos - ou começamos a suspeitar - de que estamos falando de Kafka (apesar de que quem conhece a vida do escritor já desconfiar) quando surge Max. E mais à frente, a confirmação:

(...) começou a escrever um romance mas nunca passou da primeira frase. 'Alguém deve ter caluniado Josef K., pois sem que tivesse feito nada de errado, numa certa manhã, ele foi detido'.  Ele memorizou essa frase, a única de que conseguia se lembrar agora entre os seus escritos, já que entregou todos os seus papéis, notas e diários a Max depois do seu casamento, ordenando-lhe que queimasse tudo. O traiçoeiro Max perguntou, agindo inocentemente, por que ele mesmo não destruiu tudo.

O que interessa no conto não é sua ação - que, a rigor, não existe - mas a recriação do ambiente, tanto geográfico quanto psicológico, que envolveu o autor d'O Processo. Max telefona alguns dias depois, dizendo que tudo terminou numa fogueira. Kafka jamais veria o amigo novamente. Acompanhamos os pensamentos envolvendo os judeus e o rabino de Beltsov (que muito o entusiasmou), já se fala da Palestina, dos turcos, russos e austríacos.

No final, com o calor do verão europeu, Franz se refugia em uma sombra, quando sua esposa finalmente aparece, esbaforida e com cara de desespero, contando-lhe a notícia de agosto de 1914. Logo agora, quando ele já estava acostumado com seus atrasos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei...

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa...

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n...