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A Queda, de Diogo Mainardi



A Queda
Diogo Mainardi
Editora Record
2012
150 páginas


119

Agora estamos na praia da Enseada, em Bertioga.

Em 7 de fevereiro de 1972, entrando no mar, na praia da Enseada, Josef Mengele teve um derrame cerebral e morreu.

Vim até aqui, com meus filhos Tito e Nico, seguindo o rastro de Josef Mengele. Quero entrar no mar em que ele morreu. Quero tripudiar sobre seu cadáver. Quero comemorar o valor da vida de um filho inválido.

Sou o Simon Wiesenthal da paralisia cerebral.

Josef Mengele está morto. Tito está vivo.

Quem acompanhava suas colunas na Veja nota o mesmo estilo - frases curtas, com muitas repetições - e uma guinada radical de assunto - não há mais que uma menção à política brasileira. Uma mistura de ensaio e memória; uma declaração de amor ao filho com paralisia cerebral após uma barbeiragem da médica que fez o parto, mais preocupada com o fim do turno de trabalho.

Duas coisas chamam a atenção: em primeiro lugar, o tom cáustico, consigo próprio e mesmo com o filho, o que não deixa de ser uma surpresa e algo muito pouco usual em relatos com essa temática. Afinal, ele mesmo reconhece que o hospital de Veneza era conhecido pelos erros médicos, e mesmo assim, não desistiu - afinal, como ele mesmo diz, com esta fachada, aceito até um filho deforme. Não há autocomiseração, nem lugar para pieguice.

Em segundo lugar, a naturalidade com que as citações são feitas. Pietro Lombardo, Ezra Pound, Dante Alighieri e Shakespeare aparecem quase que com naturalidade ao longo dos 424 curtíssimos capítulos e das 150 páginas lidas em um só fôlego. O resultado está longe de algo que possa ser entendido como pedante, com o autor buscando referências que pudessem ilustrar gratuitamente o livro. Tudo parece estar realmente interligado, tudo surge quase como óbvio, como por exemplo, no capítulo 117, que fala dos meninos costurados por Mengele: Nino e Tito, ou no convite que Le Corbusier recebeu para desenhar um novo hospital em Veneza, justamente no dia do nascimento do autor. 

Como ele mesmo diz: Além de dizer que Tito era Deus, eu dizia também, naquela coluna, que "um menino com paralisia cerebral era como a maçã de Newton: caindo, ele revelava os mecanismos secretos de funcionamento do mundo".





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