Há uns dois dias, saiu uma
reportagem sobre pessoas com uma memória infalível. São os chamados “Googles
humanos”, que possuem uma síndrome raríssima, chamada Memória Autobiográfica
Altamente Superior (HSAM), e não se esquecem de quase nada do que lhes
aconteceu na vida.
Lembrei-me de um dos meus contos
favoritos de Borges – Funes, o Memorioso –
que integra Ficções (1944). No conto da semana, uma memória
prodigiosa: Irineu Funes simplesmente se lembrava de tudo:
Ouvi de
repente a alta e zombeteira voz de Irineu. Essa voz falava em latim; essa voz
(que vinha da treva) articulava com moroso deleite um discurso ou prece ou
encantação.
(...)
Irineu
começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa
registrados pela Naturalis
Historia: Ciro, rei dos persas, que sabia
chamar pelo nome todos os soldados de seus exércitos; Mitridates Eupator, que
administrava a justiça nos 22 idiomas de seu império; Simônides, inventor da
mnemotécnica; Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o
escutado uma única vez.
Nem tudo era simples para ele: era-lhe muito difícil dormir. Dormir é
distrair-se do mundo; Funes, de costas no catre, na sombra, imaginava cada
fenda e cada moldura das casas certas que o rodeavam.
Não era um gênio, mas uma
excentricidade: sua memória não significava inteligência, e conseguia decorar
sem necessariamente entender. Era uma enciclopédia, lembrava-se de uma
infinidade de estágios, mas não conseguia raciocinar.
A receosa
claridade da madrugada entrou pelo pátio de terra.
Então vi
o rosto que toda a noite falara. Irineu tinha dezenove anos, nascera em 1868,
pareceu-me monumental como o bronze mais antigo que o Egito, anterior às
profecias e pirâmides. Pensei que cada uma de minhas palavras (que cada um de meus gestos) perduraria em sua implacável memória; entorpeceu-me o temor de multiplicar gestos inúteis.
Irineu
Funes morreu em 1889, deu uma congestão pulmonar.
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