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Funes, o Memorioso, de Jorge Luis Borges



Há uns dois dias, saiu uma reportagem sobre pessoas com uma memória infalível. São os chamados “Googles humanos”, que possuem uma síndrome raríssima, chamada Memória Autobiográfica Altamente Superior (HSAM), e não se esquecem de quase nada do que lhes aconteceu na vida.

Lembrei-me de um dos meus contos favoritos de Borges – Funes, o Memorioso – que integra Ficções (1944). No conto da semana, uma memória prodigiosa: Irineu Funes simplesmente se lembrava de tudo:

Ouvi de repente a alta e zombeteira voz de Irineu. Essa voz falava em latim; essa voz (que vinha da treva) articulava com moroso deleite um discurso ou prece ou encantação.

(...)

Irineu começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa registrados pela Naturalis Historia: Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus exércitos; Mitridates Eupator, que administrava a justiça nos 22 idiomas de seu império; Simônides, inventor da mnemotécnica; Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o escutado uma única vez.

Nem tudo era simples para ele: era-lhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo; Funes, de costas no catre, na sombra, imaginava cada fenda e cada moldura das casas certas que o rodeavam.

Não era um gênio, mas uma excentricidade: sua memória não significava inteligência, e conseguia decorar sem necessariamente entender. Era uma enciclopédia, lembrava-se de uma infinidade de estágios, mas não conseguia raciocinar.

A receosa claridade da madrugada entrou pelo pátio de terra.

Então vi o rosto que toda a noite falara. Irineu tinha dezenove anos, nascera em 1868, pareceu-me monumental como o bronze mais antigo que o Egito, anterior às profecias e pirâmides. Pensei que cada uma de minhas palavras (que cada um de meus gestos) perduraria em sua implacável memória; entorpeceu-me o temor de multiplicar gestos inúteis. 

Irineu Funes morreu em 1889, deu uma congestão pulmonar.


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