a máquina de fazer espanhois, de valter hugo mãe. Cosac Naify, 2011
“passados vinte e três dias, a elisa e o meu genro vieram visitar-me, traziam os meus netos, o miúdo e a miúda, e eusenti que já não poderia adiar mais o encontro. assim que entraram em meu exíguo quarto, as portadas abertas para mostrarem que vivemos em profunda claridade, fizeram fila no correr do roupeiro e permaneceram esticados como para revista de tropas. verifiquei que estavam de gala, todos adomingados para me verem e eu imaginava bem a elisa a dar ordens precisas sobre isso. quero-vos arranjados porque vamos ver o avô. e eu senti-me um idiota por ter julgado algum dia que as visitas iam ser constantes, coisa do cotidiano, para que eu acreditasse ainda na união da família. que idiota fui, de facto, assumindo ali diante deles que se punham embonecados no disparate de acharem que assim devia ser para irem ver quem outrora viam todos os dias. era como transformarem-me num passeio aborrecido, igual a meterem-se no obsoleto jardim zoológico e obedientemente não alimentarem os animais, porque lhes estragariam a dieta e os ajudariam a adoecer. (p. 46).
Neste segundo livro de valter hugo mãe publicado no Brasil, desta vez pela Editora Cosac Naify, com capa e orelha de Lourenço Mutarelli, o barbeiro antonio jorge da silva acaba de ficar viúvo, aos 84 anos. Imediatamente, é posto pela filha no “Lar da Feliz Idade”, nas suas palavras, um matadouro.
Impossível não lembrar dos Lares do Feliz Ocaso, de Saramago, em As Intermitências da Morte: “Os lares para a terceira e quarta idades, essas benfazejas instituições criadas em atenção à tranquilidade das famílias que não têm tempo nem paciência para limpar os ranhos, atender aos esfíncteres fatigados e levantar-se de noite para chegar a arrastadeira”.
A tal máquina de fazer espanhóis vem a ser, ao que parece, esse matadouro. Se no remorso de baltasar serapião o tema central estava na violência doméstica, aqui há uma crítica à forma como tratamos os idosos – que se tornam os estrangeiros em nossa sociedade. Não por outra razão, o “espanhol” da história é um sujeito que pensa ser português – o enrique de badajoz de Portugal. Isso se faz ao mesmo tempo em que critica pesadamente a sociedade portuguesa em vários aspectos – muitas críticas perfeitamente aplicáveis do lado de cá do Atlântico. O sentimento de inferioridade que nós sentimos, eles também sofrem do lado de lá:
“somos um país de cidadãos não praticantes. ainda somos um país de gente que se abstem. como os que dizem que são católicos mas não fazem nada do que um católico tem para fazer, não comungam, não rezam e não param de pecar. ò senhor silva, dizia-me o silva da europa, anda para aí tudo ignorante destas coisas. a ignorância é que nos pacifica. a paz está toda metida na ignorância, pronta para levar as pessoas à felicidade. e isto era a receita do regime. Igualzinho. hoje podemos ver mas não há quem queira ver. temos um povo que compra o jornal para ler as futilidades, e compra mais ainda as revistas de alcoviteirice, e nem sequer entenderia notícias diferentes” (p. 154)
Há ainda uma crítica permanente ao regime de Salazar e à passividade dos portugueses durante o período – uma visita que recebemos em casa de bom grado, que começou por nos ajudar, mas que depois não quis mais ir-se embora e que nos fez sentir visita sua, até que nos tirou da mão. E também uma ironia nos tempos de crise européia – o filho é professor de finanças na Grécia...
O livro foi lançado na Flip no início deste mês.
Comecei a ler. Lembra muito o estilo do Saramago, com uma vantagem: sem a ideologia política.
ResponderExcluirAliás E.E.Cummings (ver os americanos em Paris nos anos 20) tambem se assinava com as iniciais minusculas.
ResponderExcluir