Pular para o conteúdo principal

Conto da semana - Ersan Uldes e o tradutor desmascarado

Aleksandar Hemon, autor de Projeto Lázaro (que recomendo) nasceu na Bósnia e se encontrava nos Estados Unidos quando estourou a guerra, nos anos 90. Ficou por lá mesmo, em Chicago, e adotou o inglês como idioma de suas obras (como Conrad e Nabokov).

Nos últimos anos, passou a editar a série Best European Fiction, selecionando um autor de cada país do continente para, em suas palavras, “descobrir os futuros Joyce, Conrad, Mann”. 

Pois na edição de 2011 (adquirida na Amazon, by Kindle), descobri um autor turco - sim, para Hemon a Turquia faz parte da Europa - Ersan Üldes, e o conto da semana, Comportamento Profissional.

Um curioso relato de um ex-tradutor que, percebendo a ignorância de seus editores que mal conheciam os idiomas dos originais adquiridos, passou a alterar os textos, levando ao extremo a batida associação entre tradutor e traidor.

O tradutor então rearrumava os textos originais. Se o autor matava um personagem nos primeiros capítulos, ele poderia prolongar sua existência, assassinando-o no último. Criava personagens, suprimia cenas, mudava finais – torna-se tão autor quanto o próprio traduzido.

E ele era bem sucedido: alguns autores faziam mais sucesso na Turquia do que nos demais países. Suas intervenções eram muito bem sucedidas; o público adorava, sem nunca desconfiar de nada.  Autores eram consagrados pelo que não haviam escrito – e sim pelo que o personagem havia criado em seu lugar.

Evidentemente, com o passar do tempo, fica cada vez mais arrogante e autoconfiante – o que, presumivelmente, será determinante para a sua queda: ao traduzir uma obra de Judith Wohmann ,“que teve papel fundamental na ascensão de tradutor para autor”, diz. 

E foi traduzindo o seu O Número Pi: um romance, “à prova de ‘correções’ ou ‘revisões’”, que ele encontra o seu fim. Uma história dividida em 3 capítulos, com 3 narradores, com 3 diferentes personagens principais, e com 3 finais diferentes, permitindo ao leitor sua própria interpretação. Como alterar o número? Imagine, diz o nosso ex-tradutor, mudá-lo para 13, número do azar, e multiplicar todos esses aspectos por 13...

Impossibilitado de alterar a história, é desmascarado, e a carreira, arruinada. O conto relembra a impossibilidade de uma tradução “isenta” ou “autêntica”; que o tradutor sempre cria algo – o que é notável quando lemos poesia traduzida (lemos, na verdade, outra coisa, que esperamos bem próxima da original...). Como traduzir Guimarães Rosa?

O conto é muito interessante. Ou então os tradutores do texto turco para o inglês (a edição é de Hemon, lembre-se) alteraram seu original, tornando-o interessante...

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n