Pular para o conteúdo principal

O vale do fim do mundo, de Sándor Lénárd

O Vale do Fim do Mundo
Sándor Lénárd
Tradução: Paulo Schiller
Cosac Naify, 2013
224p.


A despeito de onde nos encontremos - ainda que seja de cabeça para baixo no universo, ainda que no Natal arda sobre nós o sol de verão -, sempre estamos no meio do mundo, o fim do mundo fica sempre à mesma distância de todos os lugares. No máximo, não somos acompanhados por tudo em nosso caminho: as catedrais góticas não deixam a Europa. As igrejas barrocas vieram até a Bahia, e lá se detiveram sob o peso de tanto ouro. A última biblioteca em cujo catálogo encontramos o nome de Erasmo de Roterdã é a de São Paulo. Em Blumenau ainda se sabe o que é uma geladeira. O último banheiro e o último anão de jardim fica em Tenente Gregório. Um harmônio chegou à igreja de Donna Irma. E por conta própria, chegamos até onde apenas o sábio não sente falta de nada, porque os antigos romanos constataram que ele "leva consigo todas as suas posses".  página 14.

Jamais ouvira falar de Sándor Lénárd até o lançamento deste O vale do fim do mundo. O autor era húngaro, mudou-se para o Brasil e viveu na cidade de Dona Emma (SC), onde exerceu as atividades de médico e farmacêutico. Como todo bom europeu do Leste, falava um monte de línguas - traduziu para o latim o Winnie the Pooh. Lembro-me imediatamente de Paulo Rónai, também húngaro, poliglota, tradutor e latinista. Também símbolo de um mundo que já não existia...

No site da Cosac Naify, um artigo fala que Lénárd, por ser médico, falando alemão e vindo da Europa e morando num ponto remoto do sul do Brasil, foi confundido com... Mengele!

Dona Emma é, no romance, Donna Irma. A vida no interior - no Alto do Vale do Itajaí nos anos 50/60; as impressões de um estrangeiro, muitas vezes não muito simpática. Uma autoficção, talvez - ele fala, por exemplo, que sua biblioteca inglesa se resume ao Ursinho Pooh e a brasileira, à excelente tradução de Paulo Rónai d'os Meninos da Rua Paulo (um clássico dos meus doze anos).

Outro ponto curioso - lá pelas tantas, ele fala do Dr. Knock, de Jules Romain, um médico picareta - o homem saudável é o paciente que não sabe qual é o seu mal - que me lembrou meus anos de Aliança Francesa.









A casa de Lénárd, em Dona Emma (SC)

Confesso que senti uma certa dificuldade com a ideia de que se trata de um romance. Mais parece - e isso não é nenhuma crítica - um daqueles relatos de viajantes estrangeiros impressionados com a vastidão e o exotismo brasileiros, tão comuns nos séculos anteriores. Com muito bom humor, percebe-se.

Comentários

  1. Mais um livro que a Biblioteca tira "do fim do mundo" e aumenta nossa lista de espera provocando as angustias de não poder ler tudo que queremos. Já está na fila e , se não existirem pistolões ou pressões da Dilma, vamos ler este húngaro nos próximos dias (...ou séculos).E.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei...

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa...

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n...