Pular para o conteúdo principal

Conto da semana, de Isaac Babel


Fui apresentado aos contos de Babel (1894-1940) por uma edição brasileira de 1989 d'A Cavalaria Vermelha, numa tradução a partir da edição soviética em espanhol, por Roniwalter Jatobá. Babel serviu no Exército Vermelho - foi comissário político no 1º Exército de Cavalaria - a Cavalaria Vermelha - durante a guerra de 1918-1922. Estava empolgado com a Revolução, que imaginava fosse enterrar os pogroms do regime czarista e seu antissemitismo. Como se sabe, errou feio.

Os contos dessa coletânea já haviam desagradado o regime stalinista (seus personagens admiravam Trotsky, e as narrativas, plenas de ironia e violência). Foi executado pelo regime e dele só se voltou a ouvir falar nos anos 1950. Seu destino, confirmado apenas após 1989.

Quando os arquivos da KGB foram abertos, resgatou-se o seguinte trecho do interrogatório de Babel. Kafka não teria escrito melhor:

- Você foi preso por atividades anti-soviéticas traiçoeiras. Você reconhece sua culpa?

- Não.

- Então como você explica sua inocência diante da sua prisão?

Sobre Babel, disse Carpeaux: é o olho míope do intelectual, discípulo consciente de Maupassant, examinando de perto as chagas sangrentas infligidas às criaturas humanas e aos bichos pela terrível brutalidade da guerra civil; é o olho aparentemente insensível do artista que contempla as ruínas de cidades e casas destruídas como se os destroços fossem elementos cúbicos de um quadro moderno. Babel aceita tudo isso friamente; e foi justamente por causa desse fatalismo que os stalinistas o perseguiram como oposicionista (...) É, a muitos respeitos, o maior contista que já surgiu no século XX.

Maupassant. 

A Nova Antologia do Conto Russo, da editora 34, traz o conto Guy de Maupassant, de Babel. A tradução agora é diretamente do original russo, de Nivaldo dos Santos. Bem diferente, seja em temática, seja em estilo, da Cavalaria.

O narrador (Babel?) se recusou a ser um medíocre funcionário de escritório - é melhor a fome, a cadeia e a vagabundagem do que ficar sentado à mesa de um escritório dez horas por dia.

Foi indicado para auxiliar Raíssa Mikhailovna Bendierski em sua empreitada de traduzir Maupassant, a única paixão da mulher. Em troca, ganha também um teto. Mas a tradução que ela faz, ou tenta fazer, de Miss Harriet, não lhe agrada - não respeitava nenhum vestígio do autor, dizia. E prossegue, num dos grandes momentos do conto:

Então comecei a falar sobre o estilo, sobre o exército de palavras, um exército no qual todo mundo. Nenhum ferro pode penetrar no coração humano de forma tão congelante do que um ponto colocado na hora certa.

Um tremendo elogio a Maupassant.

Nesta narrativa, Babel fala da arte, da literatura, ao mesmo tempo em que o narrador e Raíssa obviamente acabam se envolvendo.  Além de Miss Harriet, os personagens discutem também sobre L'Aveu (A Confissão) e Idílio. Há uma visão dos seus contos, sim, mas também uma outra - a do tradutor, que acaba por reler Maupassant a partir de suas próprias experiências e visões da arte. E o mundo do escritor francês também se reproduz aqui; afinal, Raíssa e o narrador estão sob efeito do vinho, e ela, com seus ombros à mostra...

O último parágrafo é dedicado ao próprio Maupassant, contando-nos sobre seus últimos momentos - louco em decorrência da sífilis e trancafiado num hospício.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n