Gonçalo Tavares (1970) é um dos grandes nomes da literatura portuguesa contemporânea. Li e recomendo Um Homem: Klaus Klump e A Máquina de Joseph Walser. ambos publicados pela Companhia das Letras. Saramago dizia que não se podia permitir que alguém escrevesse tão bem com (então) 35 anos. Nestes dois romances, há algo que lembra a escrita de Kafka.
O conto da semana, no entanto, integra O Senhor Calvino, publicado pela Casa da Palavra, 2007. E este Senhor Calvino "devorava" as palavras; de tanto comê-las, acabou com uma "irrupção alfabética".
O Senhor Calvino, com um guardanapo, limpava, cuidadoso, os restos de letras que ainda permaneciam à volta da sua boca, mas por vezes uma ou outra escapava. Depois daquele almoço, por exemplo, um A ali ficara, teimoso, no lado direito do queixo.
Calvino, olhando-se agora ao espelho, não pôde deixar de admirar a capacidade de resistência daquela letra aos anteriores enérgicos movimentos do seu guardanapo, e observava então aquele A como quem observa um alpinista agarrando-se desesperadamente para não cair. De fato, aquela letra parecia resistir, e como que pedia, Calvino pensou mesmo nessa palavra - compaixão.
Calvino naquele dia decidiu fechar os olhos. Algo o comovera em toda aquela cena.
E assim saiu à rua com a consciência plena de que tinha um A, um pequeno A, no lado direito do queixo.
Várias pessoas cravavam os olhos naquela irrupção alfabética, e a Calvino não passava despercebido o modo como alguns desconhecidos se controlavam, no último momento, para não lhe dizerem: desculpe, mas o senhor tem um A a cair do queixo! Mas ninguém teve coragem para tal.
Por ele nada faria para apressar esse acontecimento: quando as circunstâncias o determinassem o A cairia do seu queixo. Calvino decidira deixá-lo pois à sorte e ao natural atrito do mundo.
Por certo o nome do personagem homenageia Italo Calvino, que poderia ter escrito algo semelhante. E.
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