Pular para o conteúdo principal

As Naus, de António Lobo Antunes

AS NAUS

As Naus
António Lobo Antunes
Alfaguara/Objetiva, 2011
182 páginas

Apesar de lançado no Brasil este ano, o livro foi escrito em 1988, quando a hoje questionada União Europeia estava em seus melhores momentos – já havia incluído Portugal, Espanha e Grécia; tudo parecia caminhar incrivelmente bem. Curiosamente, Lobo Antunes oferece uma visão demasiadamente pessimista de seu país – ainda que a história se passe na década de 70, em meio ao processo de descolonização da África. O pessimismo é, no entanto, bastante atual.


Nunca havia lido nada de Lobo Antunes, que no Brasil é o outro time do Fla-Flu que se formou entre os seus admiradores e os de Saramago. Essa disputa, inclusive, nos fez ignorar outros nomes da literatura portuguesa, que só agora começamos a notar.

Em As Naus, há uma infinidade de narradores; da terceira para a primeira pessoa, num mesmo capítulo; o mesmo acontece com a questão temporal – saímos do século XV para o XX em duas ou três frases:

Era uma vez um homem de nome Luis a quem faltava a vista esquerda, que permaneceu no Cais de Alcântara três ou quatro semanas pelo menos, sentado em cima do caixão do pai, à espera que o resto da bagagem aportasse no navio seguinte. Dera aos estivadores, a um sargento português bêbedo e aos empregados da alfândega, a escritura da casa e o dinheiro que trazia, vira-os içar o frigorífico, o fogão e o Chevrolet antigo (...)   - p. 15.

Camões, Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama, Diogo Cão e Dom Manuel não fazem uma viagem no tempo; parecem mais uma assombração, vagando por Lixboa vindos da África. Depois de 500 anos, aqueles que fizeram a glória de Portugal fazem agora o caminho de volta, totalmente anônimos e ignorados – Camões escrevendo Os Lusíadas numa birosca do porto de Lisboa, onde teve a oportunidade de conhecer um sujeito sempre a escrever em folhas soltas de agenda e papéis desprezados um romance intitulado, não se entendia porquê, de Quixote.

No retorno, encontram figuras como Garcia Lorca. Mas, depois de todos esses anos, parece que o que lhes resta é aguardar aquilo que se diz que Portugal espera até hoje – a volta de Sebastião:

(...) Esperámos, a tiritar no ventinho da manhã, o céu de vidro das primeiras horas de luz, o nevoeiro cor de sarja do equinócio, os frisos de espuma que haveriam de trazer-nos, de mistura com os restos de feira acabada das vagas e os guinchos de borrego da água no sifão das rochas, um adolescente loiro, de coroa na cabeça e beiços amuados, vindo de Alcácer Quibir com pulseiras de cobre trabalhado dos ciganos de Carcavelos e colares baratos de Tânger ao pescoço (...) p. 181.

Comentários

  1. Lembro-me de um titulo do autor: "Os cus de Judas", mas não li. Pela amostragem, Lobo Antunes entra no DBE - Departamento de Boca de Espera que quase não tem mais vaga...

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

Conto da semana - Saki

O conto da semana é   A Porta Aberta , de Saki, ou melhor, Hector Hugh Munro (1870-1916). Saki nasceu na Índia; o pai era major britânico e inspetor da polícia de Burma. O autor morreu no front francês durante a I Guerra. Já havia falado dele num post sobre a coleção Mar de Histórias , de Ronai e Aurélio, bem como um curta nacional. Ele está no volume 9. Mas apenas mencionei este conto, de cerca de cinco páginas. O vídeo acima é uma produção britânica de 2004 com Michael Sheen (o Tony Blair do filme "A Rainha") como Framton Nuttel, e Charlotte Ritchie como Vera, a menina de cerca de quinze anos que "faz sala" enquanto sua tia não chega. E começa a contar ao visitante sobre a terrível "tragédia" que se abateu sobre a tia, a Sra. Sappleton. O conto é um dos mais famosos de Saki, conhecido por tratar do lado cruel das crianças.