Pular para o conteúdo principal

Fernando Pessoa, uma quase autobiografia. José Paulo Cavalcanti Filho



Conheci Fernando Pessoa em 1966, pela voz de João Villaret. Foi o começo de uma paixão que até hoje me encanta e oprime. Tenho mesmo a sensação de que gostava dele ainda mais naquele tempo. Talvez porque todo começo de paixão seja assim mesmo...depois arrefece; ou então, como o rio de sua aldeia, ele apenas pertencesse a menos gente. Pouco a pouco, fomos nos aproximando. Leio frases suas, hoje, como se tivesse estado ao seu lado quando as escreveu; e chego a pressentir as reações que teria perante algum fato do quotidiano. Não se deu apenas comigo. Jorge Luis Borges, 50 anos depois de sua morte, pediu: Deixa-me ser teu amigo; e Luiz Ruffato lembra que era outono e azul quando apresentei-me a Fernando Pessoa. No íntimo, é como se continuasse vivo. Penso que será sempre assim em livros como este, que se propõem contar a história de uma vida. Ao passar dos anos, fui compreendendo melhor esse homem inquieto, o corpo frágil, a angústia da alma, a dimensão grandiosa da obra. Em Lisboa, pude conversar com pessoas que o conheceram. Tocar, com os dedos, papéis escritos por ele. Visitar as casas onde morou. Em frente à escrivaninha do seu quarto, imaginar que o via escrever O guardador de rebanhos. No fundo, agora o percebo,queria sentir os limites do seu destino; e, a cada passo dessa viagem ao passado, era como se sua figura fosse ganhando matéria. Como se em cada canto, impressentidamente, começasse a escapar das sombras. Tanto que o vi, no Chiado, próximo à esquina da Livraria Bertrand. Amigos juram que não era ele; mas esses, coitados, nada conhecem de fantasmas”  (p. 17-18)

Muito comemorada e comentada esta obra de José Paulo Cavalcanti Filho, advogado e ex-ministro da Justiça. Nada mais merecido. Preocupado com o grande público brasileiro, escreveu algo raro em nosso país: uma obra com profundidade e abrangência, e ao mesmo tempo de leitura agradável, ao longo de suas mais de 700 páginas.

Torna-se, assim, uma bela introdução ao poeta e sua obra para aqueles que pouco o conhecem, e uma fonte de referências para os mais íntimos.

Ao tratar dos heterônimos, em primeiro lugar procura demonstrar a recorrência em que são encontrados na literatura, não apenas em língua portuguesa como também estrangeira. Ao trata especificamente dos heterônimos de Fernando Pessoa, além de obviamente dedicar várias páginas aos mais importantes e conhecidos, defende que, ao todo, seriam 127 (e cita-os, um a um).

A tese central, no entanto, é a de que toda a obra de Pessoa remete à sua biografia – e, nesse sentido, seria um escritor “sem qualquer imaginação”. E, para isso, desce às minúcias de sua vida; suas casas, seus escritórios, o período na África do Sul, até mesmo os pratos e restaurantes mais freqüentados; sua relação com movimentos místicos; seu relacionamento com Sá-Carneiro, Miguel Torga e Almada Negreiros. Os poemas do autor permeiam todo o livro.

Na última parte, o Ato IV – Em que se conta do desassossego e de seu destino – a decadência física do poeta e sua morte. Os últimos dias são descritos, de 26 a 30 de novembro de 1935. Neste dia 30:

Aos amigos, segundo informam Antônio Quadros e Gaspar Simões, ainda consegue perguntar com voz clara e alta:

Amanhã a estas horas, onde estarei?

Não há memória do que lhe tenham respondido. “Partir! Meu Deus, partir! Tenho medo de partir!...”, escrevera tão antes. Pelas 8h da noite, começa a perder a visão. Em um intervalo de lucidez, e pensando ainda ler o livrinho que tem com ele, murmura suas últimas palavras:

Dai-me os óculos.

Não lhe deram. Não haveria serventia para eles.

Antonio Tabucchi foi mais generoso. Em seu Os três últimos dias de Fernando Pessoa – um delírio (Editora Rocco, 1996), “Pessoa suspirou. Antonio Mora pegou os óculos do criado-mudo e ajeitou-os em seu rosto. Pessoa arregalou os olhos e as suas mãos pararam sobre o lençol. Eram exatamente oito e meia da noite”.

Comentários

  1. Quem assistiu Villaret em seus recitais no velho Teatro Joao Caetano não mais esquece. Talvez em algum acervo, encontremos a serie de programas "Quadrante" que era transmitida pela Radio MEC onde Paulo Autran lia alguns dos poemas de Pessoa com sucesso entre os parcos ouvintes da radio.

    ResponderExcluir
  2. Acho que este José Paulo Cavalcanti não acrescentou nada à vida e obra de Fernando Pessoa. Mais uma panaceia a acrescentar às outras 4 ou 5 biografias existentes - nada de novo no horizonte.
    Descobriu mais 55 heterônimos, diz-se. Isso não é verdade, já que muitos são pseudônimos ou outros nomes fantasistas, sem produção literária importante e não estão divulgados pelo grande público, mas foram catalogados por diversos estudiosos do seu espólio.
    A tese central de que Fernando Pessoa seria um "escritor sem qualquer imaginação" é o maior absurdo e afirmação criminosa sobre Fernando Pessoa. Só quem tem complexos de se ver retratado pelo poeta como um burguês endinheirado, sem princípios alguns a não ser o dinheiro, a vida comum e cinzenta do materialismo e a limitação de horizontes mentais, poderá afirmar tal aberração.
    A minha opinião é que essa chamada "quase autobiografia" é uma farsa orquestrada para arrasar a obra e o pensamento do Fernando Pessoa, especialmente aquele que é pouco ou nada conhecido no Brasil e no mundo (excepto Portugal) sobre o "Quinto Império" e o declínio das sociedades modernas. Há quem tenha interesse em manter o "satus quo". As idéias políticas de Pessoa, prevendo o que está acontecendo e o futuro inevitável da humanidade, põem em perigo a sua posição socio-econômica. Dà para entender?

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

Conto da semana - Saki

O conto da semana é   A Porta Aberta , de Saki, ou melhor, Hector Hugh Munro (1870-1916). Saki nasceu na Índia; o pai era major britânico e inspetor da polícia de Burma. O autor morreu no front francês durante a I Guerra. Já havia falado dele num post sobre a coleção Mar de Histórias , de Ronai e Aurélio, bem como um curta nacional. Ele está no volume 9. Mas apenas mencionei este conto, de cerca de cinco páginas. O vídeo acima é uma produção britânica de 2004 com Michael Sheen (o Tony Blair do filme "A Rainha") como Framton Nuttel, e Charlotte Ritchie como Vera, a menina de cerca de quinze anos que "faz sala" enquanto sua tia não chega. E começa a contar ao visitante sobre a terrível "tragédia" que se abateu sobre a tia, a Sra. Sappleton. O conto é um dos mais famosos de Saki, conhecido por tratar do lado cruel das crianças.