O conto da semana é do escritor moçambicano Mia Couto, de quem ainda não li nenhum romance. Não por falta de opção no mercado brasileiro. Aqui, um curtíssimo conto – O Assalto - que dá o título ao livro da editora portuguesa Padrões Culturais, de 2009. A Chris recebeu o texto de uma colega. São as vantagens da Internet. Aqui, temos um assalto diferente.
Uns desses dias fui assaltado. Foi num virar de esquina, num desses becos onde o escuro se aferrolha com chave preta. Nem decifrei o vulto: só vi, em rebrilho fugaz, a arma em sua mão. Já eu pensava fora do pensamento: eis-me! A pistola foi-me justaposta no peito, a mostrar-me que a morte é um cão que obedece antes mesmo de se lhe ter assobiado.
Tudo se embrulhava em apuros e eu fazia contas à vida. O medo é uma faca que corta com o cabo e não com a lâmina. A gente empunha a faca e, quanto maior a força de pulso, mais nos cortamos.
— Para trás!
Obedeci à ordem, tropeçando até me estancar de encontro à parede. O gelo endovenoso, o coração em cristal: eu estava na ante-câmara, à espera de um simples estalido. Cumpria os mandamentos do assaltante, tudo mecanicamente. E mais parvalhado que o cuco do relógio. O que fazer? Contra-atacar? Arriscar tudo e, assim sem mais nem nada, atirar a vida para trás das costas?
(...)
Mas este curioso assaltante não lhe pediu dinheiro, relógio ou o carro:
(...)
— O que quer de mim?
— Eu quero conversar.
— Conversar?
— Sim, apenas isso, conversar. É que, agora, com esta minha idade, já ninguém me conversa.
Então, isso? Simplesmente, um palavreado? Sim, era só esse o móbil do crime. O homem recorria ao assalto de arma de fogo para roubar instantes, uma frestinha de atenção. Se ninguém lhe dava a cortesia de um reparo ele obteria esse direito nem que fosse a tiro de pistola. Não podia era perder sua última humanidade — o direito de encontrar os outros, olhos em olhos, alma revelando-se em outro rosto.
E me sentei, sem hora nem gasto. Ali no beco escuro lhe contei vida, em cores e mentiras. No fim, já quase ele adormecera em minhas histórias eu me despedi em requerimento: que, em próximo encontro, se dispensaria a pistola. De bom agrado, nos sentaríamos ambos num bom banco de jardim. Ao que o velho, pronto, ripostou:
— Não faça isso. Me deixe assaltar o senhor. Assim, me dá mais gosto.
(...)
Um assaltante especializado em roubar atenção. Os que tive o desprazer de conhecer apenas se interessavam pelas minhas carteiras (um ficou tão irritado com o moedeiro vazio que ainda se deu ao trabalho de voltar e devolvê-lo, jogando-o na minha cara) e, vez por outra, meus relógios. E, até hoje, com sobressaltos.
Olá Fábio,
ResponderExcluirPecebo que nosso "objeto" de amor é o mesmo...
De Mia Couto li A Varanda do frangipani. É uma boa pedida.
Abraços literários!