Pular para o conteúdo principal

O negociante de inícios de romance, de Matéi Visniec


 


' Hoje, a mãe morreu'.

Você acha mesmo que uma asserção assim tão simples pode sair da mente de um escritor? Asseguro-lhe que não. Escritor é, por regra, pessoa complicada, dilacerada intimamente, contorcida, cheia de contradições, consumida por ambições, muito pouco generosa, se bem que se inflame com a ideia de humanidade.

Não, lhe asseguro que Albert Camus nunca teria começado o romance O Estrangeiro com essa frase se não a tivéssemos fornecido nós. Aliás, nem sequer teria escrito esse romance num estilo tão simples, tão linear, tão confessional, visando a maior credibilidade, se não lhe tivéssemos oferecido, nós, o ponto de partida, se não tivéssemos aberto, nós, esta miraculosa portinhola.

'Hoje, a mãe morreu'.

Vários foram os clientes dessa organização: Thomas Mann, Kafka, H.G. Wells, Melville... O misterioso negociante, Guy Courtois, membro de uma organização de mais de trezentos anos, está estudando um jovem aspirante a escritor romeno. Precisa saber como irá ajudá-lo. Por outro lado, sua missão não é fácil - afinal, a língua romena jamais fora contemplada com um Nobel de literatura... 

No entanto, essa mesma organização está ameaçada - hoje se escreve em excesso, surgiram máquinas que escrevem romances combinatórios - a era do romance industrial, diz Courtois.


Matéi Visniec (1956) é, antes de romancista, um dramaturgo recém-descoberto no Brasil. Entre a ficção científica - diga-se que a "ação" se passa em 2025 - e o absurdo,  não espere nada parecido com uma narrativa convencional, mas um texto fragmentado e inconcluso, tipicamente pós-moderno. Na tradição de Ionesco, com quem, aliás, costuma ser comparado.

Comecei a destacar no livro vários trechos e me dei conta que, por vezes, grifei páginas quase inteiras. 
 
Além do aspirante a escritor romeno M., temos Bernard, um sujeito que o observa, a serviço de Courtois; e temos ainda o Torturador - que nome apropriado para esse ser que nos assombra às noites e invade nossos sonhos - sim, quer meio melhor de conhecer alguém que através dos seus sonhos? - e uma greve de escritores romenos, revoltados pelo fato de a  Academia  não ter, jamais, escolhido um romeno que escrevesse na língua materna como o Nobel. 

Impossível não se lembrar da nossa eterna espera por um Nobel brasileiro - mas os "suicídios literários cometidos na Romênia no fim do segundo decênio do século XXI" e seus efeitos midiáticos me fazem pensar quais seriam nossos nomes a aderir a esse protesto tão intenso...

E a máquina-escritora, tremendamente sedutora. Como Courtois poderia sobreviver nesse novo mundo?


O papel do escritor é debatido, numa era de inícios, de pressa - em que sempre se inicia algo, mas raramente se conclui o que se iniciou. Uma era de inícios, mas sem fins.

Para nossa sorte, a É Realizações está editando toda a obra - em especial, a dramaturgia de Visniec: A história do comunismo contada aos doentes mentais, Máquina Tchekov, O último Godot - a lista é grande. E suas peças começam a ser encenadas por aqui - o que também não é um fato corriqueiro. 

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei...

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa...

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n...