Pular para o conteúdo principal

Ian Buruma e o Ano Zero


O que mais impressionava os visitantes alguns meses depois da guerra era o estranho silêncio.

Oficialmente, a Segunda Guerra acabou em maio de 1945. Mas para muitos, em muitos países, vencedores e vencidos, foi o começo de um novo inferno. Tropas russas massacraram alemães; em Berlim, estupraram as mulheres que viam pela frente; os judeus libertos eram extremamente indesejados e, muitas vezes, culpados pelas desgraças vividas e assassinados; acertos de contas entre ocupados e alemães, e uma infinidade de outros massacres. Como dizia o alto-falante em Berlim nesta época: "Soldado, você está na Alemanha. Vingue-se dos hitleristas!"

As mulheres, por sua vez,  saíam com os libertadores num, digamos, ritmo e intensidade que chocaram os demais conterrâneos. Os homens sentiam-se humilhados pelos soldados americanos e canadenses. Houve também fome - generalizada.

Milhões de alemães étnicos estavam espalhados pelo leste europeu há gerações, e agora viram-se obrigados a retornar ao seu destroçado país. Nem todos conseguiram - muitos foram massacrados nas primeiras horas do pós-guerra. Judeus que voltavam para suas cidades descobriam que suas residências estavam ocupadas por famílias que não estavam dispostas em abandonar as novas moradias. Mesmo na Holanda. Não podiam reclamar - deviam ser discretos e gratos.

Não que tais fatos sejam exatamente novidades. Tony Judt, por exemplo, em seu monumental Pós-Guerra, já tinha tratado destes acertos. Mas este 1945: Ano Zero é centrado neste pós-guerra imediato, e não se resume ao europeu - a Ásia, em torno do derrotado Japão, também tem destaque.


O livro ainda não foi publicado no Brasil. Foi lançado recentemente, e soube dele pelo Manhattan Connection de algumas semanas atrás. Facilidades do Kindle.  

Buruma nasceu bem depois do fim da guerra e viveu na Holanda e no Japão, onde estudou História, literatura chinesa e cinema japonês. Isso explica muito do livro, evidentemente. Seu pai voltou da Alemanha para casa, na Holanda, sem saber o que, quem e como encontraria sua vida passada, em Utrecht. Ele era estudante de direito em 1941, foi feito prisioneiro alemão e sobreviveu ao bombardeio de Berlim, aos confrontos rua-a-rua e conseguiu voltar para casa.

Um dos capítulos mais interessantes é o que trata da reeducação dos povos derrotados. A desnazificação na Alemanha - mas os professores eram todos crias do regime. Ainda havia uma sensação de que o regime fora positivo nos anos de paz. No Japão, tudo foi diferente; o japonês não viu nenhuma vantagem no militarismo recém-derrotado. Talvez por isso mesmo a influência cultura americana tenha sido tão intensa.

No final, o relato da construção da ideia europeia, desde as primeiras reuniões ainda em 1942, e também das Nações Unidas. Um relato, apesar de tudo, bem otimista: os grandes legados da reconstrução do mundo a partir de 1945 teriam sido os direitos humanos e a construção do Estado do bem-estar social. 

Mas, no fundo, parece que basta uma crise econômica mais grave para a ideia da União Europeia ser posta em xeque, os neonazistas ressurgirem em vários países (Hungria e Grécia em destaque óbvio), sem falar das guerras dos bálcãs. Parece, mesmo, que nunca se aprende nada... George Steiner diz que havia, em 1914, uma certa "nostalgia da catástrofe", já que havia se passado muitos anos desde a última grande conflagração continental - Napoleão. Talvez seja isso mesmo - de tempos em tempos, precisemos quebrar tudo.

Comentários

  1. Fassbinder tem vários filmes retratando a época. Vale a pena (re)vê-los. A proposito, Tony Judt escreveu obra esclarecedora e que já esta caminhando para o esquecimento...

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

Conto da semana - Saki

O conto da semana é   A Porta Aberta , de Saki, ou melhor, Hector Hugh Munro (1870-1916). Saki nasceu na Índia; o pai era major britânico e inspetor da polícia de Burma. O autor morreu no front francês durante a I Guerra. Já havia falado dele num post sobre a coleção Mar de Histórias , de Ronai e Aurélio, bem como um curta nacional. Ele está no volume 9. Mas apenas mencionei este conto, de cerca de cinco páginas. O vídeo acima é uma produção britânica de 2004 com Michael Sheen (o Tony Blair do filme "A Rainha") como Framton Nuttel, e Charlotte Ritchie como Vera, a menina de cerca de quinze anos que "faz sala" enquanto sua tia não chega. E começa a contar ao visitante sobre a terrível "tragédia" que se abateu sobre a tia, a Sra. Sappleton. O conto é um dos mais famosos de Saki, conhecido por tratar do lado cruel das crianças.