Pular para o conteúdo principal

A Montanha Mágica, de Thomas Mann

Thomas Mann - Wikipedia 

Meu primeiro Thomas Mann foi Os Buddenbrooks, ainda durante a faculdade. Alguns anos depois, a trilogia José e seus Irmãos, As confissões do Impostor Felix Krull, A Morte em Veneza e, recentemente, Doutor Fausto. Mas faltava o que para muitos é o seu melhor trabalho. 

A descoberta do Raio X, em 1895, permitiu o diagnóstico precoce da tuberculose, ainda que, em 1907, a única forma de tratá-la era a internação em sanatórios. Thomas Mann acabara de publicar A Morte em Veneza quando, acompanhado de sua esposa, esteve em Davos. Lá surge a ideia para A Montanha Mágica.

O Sanatório Berghof hospeda uma amostra da sociedade europeia do início do século XX. Lá está Joachim Ziemssen. E é para lá que o engenheiro Hans Castorp, exausto com seus estudos e prestes a iniciar sua vida profissional, se dirige. Saudável – ao menos é o que pensa - sua ideia é visitar o primo e passar cerca de três semanas.

Ao longo das mais de 820 páginas da minha edição da Companhia das Letras, com a tradução de Herbert Caro, são muitos os duelos travados pelos personagens. 

O principal envolve o humanista Ludovico Settembrini e sua visão francamente positiva do ser humano, das luzes e do intelecto, antagonizando com seu amigo/rival Leo Naphta, polonês, judeu convertido, jesuíta, admirador da Idade Média, da fé, e descrente do homem e da razão – ser humano, afirma, é ser doente. 

Os dois disputam a alma de Hans. O autor é mais simpático a Settembrini, e isto é evidente. O interessante é que, se o livro tivesse sido escrito antes da Primeira Guerra, a predileção do autor certamente seria outra. Mann participou ativamente dessa batalha de ideias.

Ao final, surge um holandês, plantador de café na Ásia – Pieter Peeperkorn, que defende enfaticamente que Castorp se liberte dessa discussão intelectual e se permita ao prazer. 

Outro duelo é travado entre os doutores Behrens, para quem toda doença é explicada organicamente, e Krokowski, que em tudo vê um problema de repressão sexual. Hans Castorp, diga-se, tem interesse na misteriosa Claudia Chauchat, “de olhos quirguizes”, a quem se declara num Carnaval – foi o mais longe que ele conseguiu... 

Aos poucos, os embates de ideias geram tensões, que levam o Sanatório à “grande irritação” e a planície (como os hóspedes/pacientes se referem ao mundo deixado para trás), à  Primeira Guerra Mundial. 

Settembrini, Naphta e Peeperkorn são fieis às suas visões de mundo até o fim. Hans Castorp finalmente deixa Berghof, para desaparecer em algum lugar durante o conflito. E, com ele, desaparece todo o mundo concentrado no estranho sanatório de Davos.

O tempo é um personagem à parte, que paira sobre todos. Na montanha, o tempo flui diferente, e uma semana pode parecer uma eternidade; anos podem passar como poucos dias. E para o leitor, de certa forma, também. Thomas Mann não gostava do que chamamos de "literatura de entretenimento", uma vez que tudo que presta leva tempo, dizia. Ele foi fiel ao princípio em toda a sua obra e, neste livro, adverte o leitor: não se apresse, não se afobe, pois vamos levar o tempo necessário para contarmos essa história. 

Muitos, hoje, são intimidados por essas palavras e passam adiante, o que é uma pena. Ler A Montanha Mágica em 2020, quase oitenta anos após sua publicação, é ler um romance sobre um Humanismo que, ao que tudo indica, se perdeu para sempre; uma visão privilegiada do que se discutia na Europa em política, medicina, psicanálise, filosofia no início do século XX. Um livro para ser lido neste Annus Horribilis (que, para mim, em termos de leitura, está sendo um ano maravilhoso).

No Youtube, é possível encontrar o filme alemão, de 1982, dirigido por Hans W. Geissendorfer. 



Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

Conto da semana - Saki

O conto da semana é   A Porta Aberta , de Saki, ou melhor, Hector Hugh Munro (1870-1916). Saki nasceu na Índia; o pai era major britânico e inspetor da polícia de Burma. O autor morreu no front francês durante a I Guerra. Já havia falado dele num post sobre a coleção Mar de Histórias , de Ronai e Aurélio, bem como um curta nacional. Ele está no volume 9. Mas apenas mencionei este conto, de cerca de cinco páginas. O vídeo acima é uma produção britânica de 2004 com Michael Sheen (o Tony Blair do filme "A Rainha") como Framton Nuttel, e Charlotte Ritchie como Vera, a menina de cerca de quinze anos que "faz sala" enquanto sua tia não chega. E começa a contar ao visitante sobre a terrível "tragédia" que se abateu sobre a tia, a Sra. Sappleton. O conto é um dos mais famosos de Saki, conhecido por tratar do lado cruel das crianças.