Meu primeiro Thomas Mann foi Os Buddenbrooks, ainda durante a faculdade. Alguns anos depois, a trilogia José e seus Irmãos, As confissões do Impostor Felix Krull, A Morte em Veneza e, recentemente, Doutor Fausto. Mas faltava o que para muitos é o seu melhor trabalho.
A descoberta do Raio X, em 1895, permitiu o diagnóstico precoce da tuberculose, ainda que, em 1907, a única forma de tratá-la era a internação em sanatórios. Thomas Mann acabara de publicar A Morte em Veneza quando, acompanhado de sua esposa, esteve em Davos. Lá surge a ideia para A Montanha Mágica.
O Sanatório Berghof hospeda uma amostra da sociedade europeia do início do século XX. Lá está Joachim Ziemssen. E é para lá que o engenheiro Hans Castorp, exausto com seus estudos e prestes a iniciar sua vida profissional, se dirige. Saudável – ao menos é o que pensa - sua ideia é visitar o primo e passar cerca de três semanas.
Ao longo das mais de 820 páginas da minha edição da Companhia das Letras, com a tradução de Herbert Caro, são muitos os duelos travados pelos personagens.
O principal envolve o humanista Ludovico Settembrini e sua visão francamente positiva do ser humano, das luzes e do intelecto, antagonizando com seu amigo/rival Leo Naphta, polonês, judeu convertido, jesuíta, admirador da Idade Média, da fé, e descrente do homem e da razão – ser humano, afirma, é ser doente.
Os dois disputam a alma de Hans. O autor é mais simpático a Settembrini, e isto é evidente. O interessante é que, se o livro tivesse sido escrito antes da Primeira Guerra, a predileção do autor certamente seria outra. Mann participou ativamente dessa batalha de ideias.
Ao final, surge um holandês, plantador de café na Ásia – Pieter Peeperkorn, que defende enfaticamente que Castorp se liberte dessa discussão intelectual e se permita ao prazer.
Outro duelo é travado entre os doutores Behrens, para quem toda doença é explicada organicamente, e Krokowski, que em tudo vê um problema de repressão sexual. Hans Castorp, diga-se, tem interesse na misteriosa Claudia Chauchat, “de olhos quirguizes”, a quem se declara num Carnaval – foi o mais longe que ele conseguiu...
Aos poucos, os embates de ideias geram tensões, que levam o Sanatório à “grande irritação” e a planície (como os hóspedes/pacientes se referem ao mundo deixado para trás), à Primeira Guerra Mundial.
Settembrini, Naphta e Peeperkorn são fieis às suas visões de mundo até o fim. Hans Castorp finalmente deixa Berghof, para desaparecer em algum lugar durante o conflito. E, com ele, desaparece todo o mundo concentrado no estranho sanatório de Davos.
O tempo é um personagem à parte, que paira sobre todos. Na montanha, o tempo flui diferente, e uma semana pode parecer uma eternidade; anos podem passar como poucos dias. E para o leitor, de certa forma, também. Thomas Mann não gostava do que chamamos de "literatura de entretenimento", uma vez que tudo que presta leva tempo, dizia. Ele foi fiel ao princípio em toda a sua obra e, neste livro, adverte o leitor: não se apresse, não se afobe, pois vamos levar o tempo necessário para contarmos essa história.
Muitos, hoje, são intimidados por essas palavras e passam adiante, o que é uma pena. Ler A Montanha Mágica em 2020, quase oitenta anos após sua publicação, é ler um romance sobre um Humanismo que, ao que tudo indica, se perdeu para sempre; uma visão privilegiada do que se discutia na Europa em política, medicina, psicanálise, filosofia no início do século XX. Um livro para ser lido neste Annus Horribilis (que, para mim, em termos de leitura, está sendo um ano maravilhoso).
No Youtube, é possível encontrar o filme alemão, de 1982, dirigido por Hans W. Geissendorfer.
Ha muito tempo nao via um comentario tao lucido e sintetico sobre a MM
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