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Andrés Neuman é o próprio Viajante do Tempo


O Viajante do Tempo
Andrés Neuman
Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro
Alfaguara, 2011
454 p.



Provavelmente encerrei 2013 com um grande livro. Andrés Neuman (1977), argentino que vive em Granada, Espanha, imagina uma cidade, Wandernburgo, situada entre a Prússia e a Saxônia e cujas ruas se movem durante as noites. O livro que acabo de ler foi editado no Brasil em 2011 mas escrito entre 2003 e 2008, ou seja, quando seu autor tinha entre 26 e 31 anos, o que apenas demonstra o meu fracasso...




Numa gélida noite de inverno, Hans chega à cidade, em busca, apenas, de um quarto, para prosseguir sua viagem no dia seguinte. Acaba ficando. Não consegue deixá-la. Conhece o realejeiro e uma série de personagens da sociedade local - sua verdadeira razão acaba sendo Sophie Gottlieb, filha de um sólido comerciante da cidade. 

O romance se passa em meados do século XIX. Neuman consegue, sem forçar a barra ou cair em didatismos estéreis para um livro de ficção, passá-lo em revista: o mundo pós-Napoleão, as questões nacionais (nos salões, Hans discute sobre a proposta de união aduaneira que mais tarde dará origem ao estado alemão), democracia... Os personagens que frequentam esses salões, secundários, merecem atenção, até pelas discussões que travam.

Professor, respondeu Hans olhando para o espelho de esguelha, a Europa jamais poderá se organizar se não houver uma ordem justa em cada país. Que as constituições de nossos invasores sejam as que mais liberdades nos deram não mereceria ao menos uma reflexão?

Para destroçar a Europa, disse Hans pensativo, não precisamos de Napoleão, nos bastamos sozinhos. Estou vindo exatamente de Berlim, senhor, e lhe asseguro que não gosto nada do entusiasmo bélico dos jovens, quem dera nós tivéssemos mais política inglesa e menos polícia prussiana.

E muita - muita - literatura. Hans e Sophie têm juntos um projeto de traduções. O trabalho acaba deixando-os, digamos, extremamente excitados sexualmente. Há tara para tudo. Até para Bocage. Hans domina um monte de línguas.

Temos Quevedo, enumerou Hans, Lope de Vega, San Juan, Garcilaso... e Góngora?, disse Álvaro. Góngora melhor não, respondeu Hans, é intraduzível. Mas, disse Sophie, você não dizia que a poesia sempre pode ser traduzida? Sim, sim, toda, sorriu Hans, menos Góngora. E você pôde lê-lo em espanhol? estranhou Álvaro. Bom, disse Hans, mais ou menos, tenho alguns livros dele no baú. Mas quantos idiomas você sabe?, perguntou Álvaro. Alguns, disse Hans. E como você aprendeu?, perguntou Álvaro. Digamos que viajando, respondeu Hans.

Hans é um grande tradutor. É interessante - não há muitos personagens importantes que sejam tradutores. Ainda por cima um tradutor que se dá bem - vide Sophia. E os personagens têm nomes interessantes: o prefeito Ratztrinker, Gottlieb, o padre Pigherzog... e entre ratos e porcos, uma família Rumenigge.

Cada um dos quatro capítulos se passa em uma estação do ano, e Hans, que pensava em ficar na cidade por uma noite, acaba ficando por um ano. No quinto capítulo, as coisas engrossam para o lado dele. Um mistério é revelado - um misterioso personagem é desmascarado. Aqui dá para sentir outro aspecto do século XIX que irá se desenvolver no seguinte: o antissemitismo.

Um romance que levou cinco anos para ser construído, com erudição de sobra, sem ser afetado. Em alguns momentos, a vida em Wandernburgo e de Gottlieb me lembra um pouco o mundo dos Buddenbrook. Um romance completo, que consegue passar o século XIX em revista, numa narrativa decididamente do século XXI. 

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