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O Estudante de Coimbra, de Guilherme Centazzi

O Estudante de Coimbra de Guilherme Centazzi, O primeiro romance moderno português
O Estudante de Coimbra 
Guilherme Centazzi
Editorial Planeta
318 p.


Nasci no Algarve, donde se vê que devo ser grulha, e falador: isto ponho eu já aqui para que os leitores saibam com quem se metem, e depois se não queixem das digressões e moralidades a que sou sujeito, e de que por mais que faça nunca posso mondar de todo o que escrevo: sou pois algarvio, isto é, filho lá das terras que estão mais ao sul de Portugal, formando certa província com a alcunha de reino, que pela natureza do seu clima poderia produzir muitos gêneros de ambas as Índias, se bem governados tivéssemos tido a ventura de ver prosperar a nossa indústria, e se do ouro do Brasil nos não tivesse metido nos ossos a mania de ser ricos sem trabalhar, assemelhando-nos aos campos sem cultura aonde só medram plantas estéreis. (p. 27)

Um prazer para poucos. É (deve ser) descobrir uma obra há muito esquecida. Foi o que Pedro Almeida Vieira fez com este romance de 1840, de Guilherme Centazzi (1808-1875). Ele, na verdade, não aceita muito o termo "descoberta"; prefere "resgate". O título já estava catalogado no Dicionário Bibliográfico Português, de Inocêncio Francisco da Silva, mas sem maiores informações. Mas ninguém falava dele. Na Biblioteca Nacional, descobriu tratar-se verdadeiramente de um romance - anterior a Alexandre Herculano, até então considerado o pai do romance moderno português, e Garrett. O primeiro capítulo pode ser lido aqui.

O romance se passa no período das guerras liberais - as brigas entre D. Miguel absolutista e D. Pedro (I nosso, IV deles). A posição de Centazzi é clara, e por vezes exagerada e mesmo caricata. Certamente, quem conhece Machado de Assis irá identificar um tratamento direto do autor com o leitor, como se pode ver não apenas no trecho acima, mas em vários momentos. Outro elemento constante é o humor - como ele retrata não apenas os portugueses, mas também espanhois, ingleses (bisteks) e franceses.

Miguel tinha apoio dos nobre e da Igreja - e não por acaso, o grande vilão do romance é Frei Barnabé - que irá inclusive levar sua Maria.

Assim terminaram seus dias meus perseguidores: o crime subiu ao cadafalso, Maria estava em meus braço recebendo o prêmio de sua inocência... O que restava a mim?... Tu o saberás, leitor...

E a admiração por D. Pedro, que entre nós é, há muito, colocado de forma bastante ironizada.   O Estudante de Coimbra lamenta sua morte em prantos. É interessante ler o romance - que para o brasileiro com pouco conhecimento da história portuguesa pode se tornar um pouco cansativo - junto com, por exemplo, o 1822 de Laurentino Gomes - lá pelo final ele explica bem a transformação de Pedro I em IV: A guerra contra D. Miguel seria o seu último ato como homem de duas pátrias, na definição de Octávio Tarquínio de Sousa: 'a de adoção (o Brasil) desamparava-o, enquanto a de nascimento (Portugal) o atraía'.


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