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Iceberg, de Paul Kavanagh


Este romance curto, de cento e poucas páginas, do inglês Paul Kavanagh (1971) é definitivamente estranho. Cheguei a ele por indicação de David Rose, e li na versão Kindle. Não foi uma leitura fácil; várias palavras que até para um leitor nativo chamam a atenção. Um desafio para quem eventualmente for traduzi-lo (aliás, Kavanagh é considerado complicado até mesmo para os native speakers...

Este Iceberg remete a Hemingway - uma das referências de Kavanagh - e sua teoria do iceberg, ou da omissão. Use apenas 10% do que você sabe do seu personagem na história. Os outros 90%, reserve para você mesmo. Há, aqui, muito desta sutileza. 

Don (um artista, pintor, nada bem sucedido ou talentoso) e Phoebe - professora de inglês na biblioteca da cidade e autora de um romance sobre caleidoscópio, igualmente sem sucesso - formam um casal duro numa cidade do norte da Inglaterra, num cenário de completa falência não apenas do país como da sociedade. Em meio à violência, ela recebe a informação de que acabara de ganhar o prêmio da loteria. A notícia chega pelo email.

É claro que é um golpe. Um sujeito que mora no Lagos, Nigéria, é o autor de tudo e sempre se surpreende com a quantidade de pessoas que respondem à mensagem... É claro também que a ingênua Phoebe jamais conta a Don ter enviado dinheiro para um outro senhor, para receber o prêmio. Lembro-me dos emails que recebo dizendo que um sujeito de Gana morreu e que se eu ajudar um herdeiro (lógico, se eu informar minha conta bancária) receberei também alguns milhões.

De qualquer forma, é para Phoebe uma chance de se livrar do locador insuportável e fronteiriço. Don ainda tem de apoiar seu pai idoso e já demente.

Eles partem numa viagem até a Antártida, para receber o tal prêmio; passam pela Holanda, Espanha, África - é interessante ver que a África parece um local mais vibrante e interessante que a Europa, algo que eles percebem muito claramente. Durante essa viagem, depressão e esperança parecem acompanhar o casal permanentemente. 

Até que chegam à Antártida e descobrem que o prêmio é um... iceberg. O que não deixa de ser uma boa; afinal, o mundo acaba de acabar. Aqui, novamente, o iceberg lembra o iceberg da teoria: não há praticamente nenhuma menção expressa ao apocalipse. 

Passam a viver neste bloco, à deriva - literal e metaforicamente -; passam pelas Malvinas (na verdade, o que sobrou delas, já que o arquipélago, bem como o planeta, encontra-se agora submerso), vão terminar em NY. A última parte - justamente a do iceberg - é escrita à moda de Saramago; parágrafos e frases imensas; quase um outro livro.

Este é nosso Castelo, e nós somos os reis, diz Phoebe. Eles se abraçam. Phoebe sussurra seu amor no ouvido de Don. Eles voltam para a barraca. Era uma lembrança triste, mas com a ajuda de Phoebe Don podia ver o absurdo de seus atos.

Quem conta a eles que o mundo acabou? Um pescador brasileiro! Um pescador brasileiro que diz chamar-se Noé e que conversa com Deus... E, falando em Brasil, aparece um Jagunço, que oferece a eles três cavalos para caminhar pelo Sertão. Kavanagh é admirador de Machado de Assis e Guimarães Rosa.

Um romance, repito, difícil. Há um evidente humor sarcástico e, por outro lado, uma intensa melancolia, e isso tudo ao mesmo tempo. Um livro para ser relido.

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