A Chave da Casa
Tatiana Salem Levy
Record, 2007
Não faço outra coisa senão olhar, tocar, observar a chave. Conheço seus detalhes de cor, o tamanho preciso de suas curvas e de sua argola, seu peso, sua cor gasta. Uma chave desse tamanho não deve abrir porta alguma. A essa altura já deveriam por certo ter mudado, se não a porta, certamente a fechadura. Seria um disparate acreditar que tanto tempo depois a chave da casa permaneceria a mesma. Tenho certeza de que até meu avô é consciente disso, mas também imagino que deva ter uma curiosidade enorme de saber se ainda está lá o que deixou para trás. Que coisa estranha, que coisa esquisita deve ser: largar o país, a língua, abandonar a família em direção a algo completamente novo e, sobretudo, incerto.
Com atraso constrangedor, li neste feriado A Chave de Casa, de Tatiana Salem Levy (Record, 2007). É curioso que, quando se fala em literatura judaica, aqui, nos Estados Unidos e na Europa, em geral se fala da literatura asquenazi, com pouco – ou nenhum – espaço para a sefaradita. Joseph Roth, Bashevis, Philip Roth, Scliar e, para ser mais atual, a própria Julie Orringer e sua A Ponte Invisível. Sua leitura, logo após a do romance de Orringer, permite algumas comparações interessantes.
A autora nasceu em Portugal, em 1979 (os pais, exilados, voltaram ao Brasil pouco depois de seu nascimento) e é neta de judeus turcos, de Esmirna. A história da chave da casa, que teria sido levada pelos judeus sefaraditas à espera de um retorno que, em geral, não ocorreu, já tinha sido visitada por Borges (O Outro, o Mesmo, 1964):
UMA CHAVE NA SALÔNICA
Abravanel, Farias ou Pinedo,
Expulsos da Espanha por cruel
Perseguição, mantêm ainda fiel
A chave de uma casa de Toledo.
Livres agora de esperança e medo,
Olham a chave sob o sol oblíquo;
No bronze, restam ontens, o longínquo,
Cansado brilho e sofrimento quedo.
Hoje que é pó sua porta, o instrumento
É cifra da diáspora e do vento,
Afim com essa chave do santuário
Que alguém lançou ao céu, quando a incendiou
O romano com fogo temerário,
E que a divina mão no azul captou.
Um romance não convencional em sua forma: há várias vozes e narradores, destacando-se as da mãe e a da própria narradora. Assim, a narrativa avança e retrocede no espaço e no tempo, numa mistura de memória e ficção. Uma abordagem bastante diferente de, por exemplo, Orringer, que também se baseia na história de seu avô para contar uma história com ritmo de cinema (o que não é nenhuma crítica). A ênfase ao contexto histórico (no caso, os anos 30-40 na Europa) não é encontrada no romance de Tatiana, que preocupa muito mais com as buscas da narradora em suas viagens pela Turquia e Portugal, em um tom decididamente mais intimista e confessional.
Merecidamente, ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria de melhor estreante.
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