Pular para o conteúdo principal

Livro, de José Luis Peixoto

(1948)
A mãe pousou o livro nas mãos do filho.
Que mistério. O rapaz não conseguia imaginar um propósito para o objeto que suportava. Pensou em cheirá-lo, mas a porta do quintal estava aberta, entrava luz, havia muita vida lá fora. O rapaz tinha seis anos, fugiu-lhe a atenção, distraiu-se, mas não se desinteressou pelo livro, apenas deixou de o interrogar enquanto objeto em si, começou a questioná-lo de maneira muito mais abstrata, enquanto intenção, enquanto sombra de um ato. A mãe disse o nome do filho:
Ilídio.

José Luis Peixoto (1974) estará na Flip deste ano (já esteve em Parati em 2005). O autor português conta a história de Ilídio, Josué, Adelaide, Lubélia, para falar, verdadeiramente, do movimento de emigração portuguesa para a França durante o regime de Salazar. Curiosamente, a edição brasileira - Companhia das Letras, 2012 - aparece no momento em que Portugal se debate com uma crise econômica de proporções épicas e novo movimento para fora do país. Os pais do autor, aliás, foram para a França na década de 60, ainda que Peixoto já tenha nascido em Portugal.

Na primeira das duas partes, temos a história de Ilídio e Adelaide. Ilídio é abandonado pela mãe aos seis anos. Quem irá criá-lo é Josué, o pedreiro da vila. Adelaide, por quem se apaixona, é enviada pela tia Lubélia para a França.

Ilídio propõe: Se namorares comigo, dou-te um pombo, cem escudos e um livro. Sobre o livro, é o mesmo que guardava desde o fatídico dia em que foi abandonado pela mãe. Na França, Adelaide frequentará a biblioteca de Constantino, com quem acabará se casando.

O fato de ser o dono da biblioteca em momento algum o torna um personagem bom. Pelo contrário; ele é bastante irônico e sarcástico. Assim se dirige a Adelaide:

Livro? Não basta ter capas e páginas cheias de palavras para ser um livro. Não basta ser feito de papel. Gorki, sabes o que é? Tolstoi, diz-te alguma coisa? Dostoievski, consegues pronunciar? Experimenta: Dos-toi-ev-ski. Livro? Às vezes, esqueço-me da tua ingenuidade.

O livro que Adelaide mostra a Constantino é aquele que a mãe de Ilídio lhe "pousou na mão" naquele longínquo dia de 1948.

A primeira parte do romance é, digamos, convencional em sua forma - o que não é nenhuma crítica. O tema da emigração portuguesa é trabalhado com maestria; as descrições das viagens pelas fronteiras e do que os portugueses imaginam ser a França são muito bem trabalhadas. E, em alguns momentos, me faz lembrar o conflito entre a aldeia portuguesa e a grande capital do mundo de A Cidade e as Serras.

Livro, afinal, não se conforma com os livros mal escritos sobre o tema de emigração de portugueses para a França, e decide, ele próprio, escrever um. Ao mesmo tempo, há várias críticas ao atual momento da indústria cultural. Basta ver que, ao mencionar o livro de Michel Houellebecq, diz tratar-se de uma leitura tardia, já que instalou-se a ideia de que romances destes têm de ser lidos na estação em que são publicados.

Há aqui uma suprema vingança de Adelaide: enquanto Constantino acha que o nome do filho é uma homenagem a ele e sua biblioteca, trata-se, na verdade, de uma homenagem ao presente que ela havia recebido de Ilídio em Portugal. Essa é não apenas a homenagem que ela faz ao livro (em minúscula mesmo). É também uma vingança de Adelaide contra o marido.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

Conto da semana - Saki

O conto da semana é   A Porta Aberta , de Saki, ou melhor, Hector Hugh Munro (1870-1916). Saki nasceu na Índia; o pai era major britânico e inspetor da polícia de Burma. O autor morreu no front francês durante a I Guerra. Já havia falado dele num post sobre a coleção Mar de Histórias , de Ronai e Aurélio, bem como um curta nacional. Ele está no volume 9. Mas apenas mencionei este conto, de cerca de cinco páginas. O vídeo acima é uma produção britânica de 2004 com Michael Sheen (o Tony Blair do filme "A Rainha") como Framton Nuttel, e Charlotte Ritchie como Vera, a menina de cerca de quinze anos que "faz sala" enquanto sua tia não chega. E começa a contar ao visitante sobre a terrível "tragédia" que se abateu sobre a tia, a Sra. Sappleton. O conto é um dos mais famosos de Saki, conhecido por tratar do lado cruel das crianças.