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Mostrando postagens de 2017

A sombra da rota da seda, de Colin Thubron

A sombra da rota da seda Colin Thubron Tradução de Otávio Albuquerque L&PM 408 páginas Centenas de motivos incitam sua partida. Entrar em contato com novas identidades humanas, preencher um mapa em branco. A noção de que este é o coração do mundo. A busca pelas formas multifacetadas da fé. Você viaja porque ainda é jovem e quer viver aventuras e ouvir o som das suas botas pisando na terra. você viaja porque é velho e precisa entender alguma coisa antes que seja tarde demais. Você viaja para ver o que pode acontecer. Ainda assim, seguir a Rota da Seda é como seguir um fantasma. Essa trilha se estende pelo coração da Ásia, mas oficialmente não existe mais, tendo deixado para trás apenas marcas de seu frenético ápice: fronteiras forjadas, povos não catalogados. As estradas se bifurcam e se perdem em desvios por toda parte. Não há um só caminho, mas inúmeros, formando uma teia de opções. A que escolhi se estende por mais de 11 mil quilômetros e tem alguns trechos

A resistência, de Julian Fuks

A resistência Julián Fuks Editora Companhia das Letras, 2016 144 páginas Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado. Se digo assim, se pronuncio essa frase que por muito tempo cuidei de silenciar, reduzo meu irmão a uma condição categórica, a uma atribuição essencial: meu irmão é algo, e esse algo é o que tantos tentam enxergar nele, esse algo são as marcas que insistimos em procurar, contra a vontade, em seus traços, em seus gestos, em seus atos. Meu irmão é adotado, mas não quero reforçar o estigma que a palavra evoca, o estigma que é a própria palavra convertida em caráter. Não quero aprofundar sua cicatriz e, se não quero, não posso dizer cicatriz. O romance rendeu ao autor o Prêmio Saramago de 2017. Durante a leitura, lembro do que Tolstoi escreveu sobre as famílias, na primeira frase de sua Anna Karenina.  Os pais do narrador (Sebastián) são psicanalistas argentinos que, diante da ferocidade da ditadura argentina de 1976, fog

A noite da espera, de Milton Hatoum

O Lugar mais sombrio: A noite da espera Milton Hatoum Companhia das Letras 216 páginas Grande surpresa ao receber A noite da espera, o primeiro dos três volumes de O lugar mais sombrio, que marca o retorno de Milton Hatoum ao romance, após um intervalo de nove anos. Já havia lido Dois Irmãos logo após o seu lançamento, em 2000 ou 2001. Apesar de a história se passar também em Paris e em São Paulo, o cenário, ao menos neste primeiro volume, é a Brasília do início dos anos 70, uma cidade com pouco mais de dez anos de fundação e ainda um imenso deserto. Martim muda-se com o pai (Rodolfo)  para a capital, após a separação traumática e, até o momento, não explicada, deste com a mãe, Lina. Pai e filho mal se falam. Martim está relembrando esses tempos, agora já vivendo em Paris. Como Martim, o autor morou na capital por alguns anos para estudar arquitetura, curso inexistente na sua Manaus. Acabou estudando na USP. Como Martim, foi detido pela polícia e passou uma

A história do amor (2016), de Radu Mihaileanu

Não sei se já passou nos cinemas daqui, mas consegui assistir na TV a cabo a mais um trabalho do excelente Radu Mihaileanu (Trem da Vida, O Concerto, A fonte das mulheres). Este A história do amor é uma adaptação do romance da norte-americana Nicole Krauss e tem como protagonista Derek Jacobi, que interpreta Leo Gursky.  Leo deixou sua pequena vila na Europa com a chegada dos nazistas. Alma Mereminski (Gemma Arterton), sua amada, já tinha feito as malas antes. Os dois fizeram juras de amor eterno e de troca de cartas mas, por alguma razão, as cartas de Leo nunca chegaram a Alma. Leo quer ser escritor, e avisa que irá escrever sobre aquilo que mais entende: Alma. Seria o romance A história do amor. Décadas depois, Leo é um idoso que vive em Chinatown, num apartamento microscópico, com o amigo Bruno Leibovitch (Elliot Gould). Passa os dias sacaneando a atendente do café, uma jovem alemã, entornando café (Leo não gosta de alemães), ou posando nu numa escola de pintura - qu

Cinco Esquinas, de Mario Vargas Llosa

Em 1990, o candidato  Vargas Llosa é derrotado por Alberto Fujimori, que se torna, então, Presidente do Peru. Azar do Peru, uma vez que sabemos o que aconteceu a partir de então. E sorte de Vargas Llosa, que passa a se dedicar integralmente à literatura. Em 2010, recebe o Nobel. Em 2010, Fujimori já se encontrava condenado a uma infinidade de anos de prisão... Mas os anos Fujimori tinham de, em algum momento, ser trabalhados por Vargas Llosa, que o fez agora, com Cinco Esquinas (editora Alfaguara, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, 213 páginas). Como dito pelo próprio autor, trata-se de um romance que aborda vários aspectos do regime que durou de 1990 a 2000, com seus toques de recolher, medo de atentados, mas também o uso, pelo governo, de jornais sensacionalistas para destruir reputações de opositores ou de qualquer um que não cedesse aos seus achaques (tema, aliás, já tratado em seu ensaio A civilização do espetáculo , que não li). E aqui entram os dois casais da

O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgakov

Há quem considere O mestre e Margarida, do ucraniano soviético Mikhail Bulgákov (  -  ) o melhor romance russo do século XX. Acabo de lê-lo, na edição de 2010 da Alfaguara, traduzida do russo por Zóia Prestes. Agora, terminada a leitura, descubro que a 34 vai lançar uma outra tradução, do Irineu Franco Perpétuo. A história de Woland (o Diabo) e seu séquito, composto por um gato preto (Behemoth), um sujeito com pince-nez (Koroviev), um caolho (Azazello) e uma ruiva nua (Hella) que aparecem na Moscou stalinista de 1929 (o diabo nunca esteve tão à vontade como quando passou por lá) é objeto de culto em várias parte do mundo. A ponto de o apartamento do autor, onde se passa a história, ser objeto de peregrinação e culto até hoje. A história também acompanha o julgamento de Jesus por Pôncio Pilatos. Moscou se torna uma cidade insegura com a chegada de Woland. O primeiro a sofrer é Berlioz, presidente de uma associação de escritores (uma associação do regime, diga-se), decapitad

Churchill, de Jonathan Teplitzky (2017)

Acabo de assistir ao filme de Teplitzky. É o primeiro dos dois filmes sobre Churchill que chegam ao Brasil. Este aqui é interpretado por Brian Cox. Na verdade, o mais esperado, e provavelmente melhor, é o interpretado pelo Gary Oldman, que só deve chegar por aqui pelo final de novembro. Este é um filme mais, digamos, psicológico: apresenta um Churchill temeroso com a Operação Overlord (Dia D), atormentado pela sua responsabilidade pelo desastre de Gallipoli (em 1915, quando 250 mil soldados ingleses e australianos foram dizimados num ataque frontal ao Império Otomano). Aparecem alguns personagens importantes, como Clementine, sua mulher, o Rei, Montgomery e Eisenhover, mas não desenvolve muito o ambiente histórico. Sim, é um bom filme, mas se parece muito (e vários críticos apontaram para esse detalhe) com uma peça de teatro. E Churchill, apesar de tudo, aparece aqui muito mais como um sujeito já meio incapacitado para conduzir a guerra.  Espero ainda mais ansioso pe

Kazuo Ishiguro

E eis que, desta vez, a Academia escolheu um escritor de literatura para o Nobel. Kazuo Ishiguro, autor de Vestígios do dia (não li, mas vi o excelente filme de 1993 com Emma Thompson, Anthony Hopkins, Christopher Reeves e Hugh Grant). Segundo Vargas LLosa, é um "escritor magnífico, de clara raiz japonesa, ainda que perfeitamente integrado tanto na literatura inglesa como na sociedade britânica. Um exemplo perfeito dessa integração é  Os Vestígios do Dia , romance no qual, com grande delicadeza, aborda os rituais da aristocracia britânica, vista com enorme sutileza e espírito crítico por um mordomo dotado de grande perspicácia. É uma delícia de novela, que introduz o leitor nesse mundo inglês com grande destreza narrativa" (trecho de seu artigo publicado no El País, e que pode ser lido, em português,  aqui.

Cervantes 470 anos

Miguel de Cervantes nasceu  em Alcalá de Henares, em 29 de setembro de 1547. "Y así, del poco dormir y del mucho leer, se le secó el cerebro, de manera que vino a perder el juicio." --Don Quixote de la Mancha (1605–1615)

Nobel 2017: apostas

Já virou tradição da Biblioteca trazer a lista com os favoritos ao Nobel de Literatura, de acordo com a casa de apostas Ladbrokes: Vamos aos 10 primeiros: 1. Ngugi Wa Thiong'o, queniano. 2. Haruji Murakami (sempre, sempre ele) 3. Margaret Atwood - canadense. Nunca li, mas é muito bem conceituada pela crítica e pelo público. Manguel adora. Seu romance mais conhecido, O conto da aia , que está na minha fila de espera, virou série de sucesso na televisão. Momento político pode ajudar. 4. Amos Oz. Israelense que costuma irritar esquerda (à qual pertence) e direita. 5. Claudio Magris. Italiano, de Trieste (escreve em italiano e fala o dialeto local). Escreve ficção, mas li Danúbio, ensaio que por si só já o coloca como merecedor do Nobel. 6. Javier María, espanhol de quem nada li. 7. Adonis, poeta sírio. Muito bom, e pode ser ajudado pela geopolítica. 8. Don deLillo, americano. Nunca li nada dele. 9. Yan Lianke, chinês não muito querido pelo regime, o

Uma sensação estranha, de Orhan Pamuk

Uma sensação estranha Orhan Pamuk tradução (indireta) de Luciano Vieira Machado Companhia das Letras, 2017, 590p. Esta é a história da vida e dos sonhos de Mevlut Karatas, vendedor de boza e de iogurte. Nascido em 1957 na fronteira ocidental da Ásia, numa aldeia pobre que dava para um lago enevoado da Anatólia Central, aos doze anos foi para Istambul, a capital do mundo, onde passou o resto da vida. Quando tinha vinte e cinco anos, voltou para a província natal e de lá fugiu com uma jovem, num estranho episódio que determinou o curso de seus dias.  Voltou para Istambul, casou-se, teve duas filhas e pôs a trabalhar sem desconto - vendeu iogurte, sorvete e arroz como ambulante, e exerceu o ofício de garçom. Mas à noite nunca deixou de perambular pelas ruas de Istambul, vendendo boza e sonhando sonhos estranhos. Assim começa mais um romance de Orhan Pamuk que acaba de chegar ao Brasil (quando, ao que parece, ele acaba de lançar outro, que deverá levar mais alguns anos pa

O cidadão ilustre, de Mariano Cohn e Gastón Duprat (2016)

Da série "filmes que não vi no cinema", este argentino já está disponível no Now.  Mais um excelente filme argentino e, ao menos no Brasil, uma raridade: sem Ricardo Darín. Oscar Martínez é Daniel Mantovani (a atuação lhe rendeu o prêmio de melhor ator em Veneza 2016), um escritor argentino, ganhador do Nobel. A rigor, o excelente roteiro não dá trégua para ninguém: a cerimônia em Estocolmo, onde seu discurso de "agradecimento" é uma pérola de arrogância e falta de educação; o próprio circuito pós-Nobel (ele recusa a participação em uma infinidade de eventos em escala planetária) é o primeiro alvo. Mantovani é uma figura difícil. Por alguma razão, aceita voltar a Salas, sua cidade natal, de onde saiu na juventude e para onde jamais voltou.  Salas é um universo à parte: ainda que próxima a Buenos Aires, a cidade de interior é profundamente provinciana e, por que não, cafona. Mantovani é recebido pelo prefeito, desfila em carro do Corpo de Bombeiros (

O caso Mersault, de Kamel Daoud

O caso Mersault Kamel Daoud Biblioteca Azul Tradução de Bernardo Ajzemberg 168 p. Hoje mamãe ainda está viva. À primeira vista, tinha tudo para ser um desastre - uma "desconstrução literária", uma revanche contra a antiga metrópole ou outra linha panfletária semelhante - mas esse O caso Mersault, que deu ao autor, Kamel Daoud, o Goncourt de melhor romance de estreia, é realmente um grande livro.  Harun, o narrador, conta sua história a um francês que tem, consigo, um volume d' O estrangeiro de Camus e está investigando o passado de Patrice Mersault, o apático narrador (um dos mais famosos personagens da literatura francesa do século passado) que é indiferente à própria mãe e matou um árabe na praia. Ele é condenado não por ter matado o árabe, mas por ter sido indiferente à mãe, inclusive no seu enterro.  Pois Harun é, exatamente, o irmão do anônimo assassinado na praia, às duas horas da tarde de um dia de verão. Camus sempre trata o árabe como