O caso Mersault
Kamel Daoud
Biblioteca Azul
Tradução de Bernardo Ajzemberg
168 p.
Hoje mamãe ainda está viva.
À primeira vista, tinha tudo para ser um desastre - uma "desconstrução literária", uma revanche contra a antiga metrópole ou outra linha panfletária semelhante - mas esse O caso Mersault, que deu ao autor, Kamel Daoud, o Goncourt de melhor romance de estreia, é realmente um grande livro.
À primeira vista, tinha tudo para ser um desastre - uma "desconstrução literária", uma revanche contra a antiga metrópole ou outra linha panfletária semelhante - mas esse O caso Mersault, que deu ao autor, Kamel Daoud, o Goncourt de melhor romance de estreia, é realmente um grande livro.
Harun, o narrador, conta sua história a um francês que tem, consigo, um volume d'O estrangeiro de Camus e está investigando o passado de Patrice Mersault, o apático narrador (um dos mais famosos personagens da literatura francesa do século passado) que é indiferente à própria mãe e matou um árabe na praia. Ele é condenado não por ter matado o árabe, mas por ter sido indiferente à mãe, inclusive no seu enterro.
Pois Harun é, exatamente, o irmão do anônimo assassinado na praia, às duas horas da tarde de um dia de verão. Camus sempre trata o árabe como O Árabe, nunca pelo seu nome - que, agora descobrimos, ser Moussa. Harun tinha apenas sete anos e passa a viver com a mãe e o fantasma do irmão.
Logicamente, naquela mesma noite, mergulhei no maldito livro. Avançava na leitura vagarosamente, mas totalmente fascinado. Eu me sentia ao mesmo tempo insultado e sendo revelado para mim mesmo. Passei a noite inteira lendo, como se lesse o livro do próprio Deus, o coração pulsando forte, prestes a sufocar. Foi uma verdadeira comoção. Havia tudo ali, menos o essencial: o nome de Moussa! Em lugar nenhum. Contei e recontei: a palavra "árabe" aparecia vinte e cinco vezes, sem nenhum nome, de nenhum de nós. Nadinha, meu amigo.
Logicamente, naquela mesma noite, mergulhei no maldito livro. Avançava na leitura vagarosamente, mas totalmente fascinado. Eu me sentia ao mesmo tempo insultado e sendo revelado para mim mesmo. Passei a noite inteira lendo, como se lesse o livro do próprio Deus, o coração pulsando forte, prestes a sufocar. Foi uma verdadeira comoção. Havia tudo ali, menos o essencial: o nome de Moussa! Em lugar nenhum. Contei e recontei: a palavra "árabe" aparecia vinte e cinco vezes, sem nenhum nome, de nenhum de nós. Nadinha, meu amigo.
Harun vinga a família e o irmão; em 1962, matou um francês. Mas não na guerra da independência - da qual não participou. Poderia ter matado, sem qualquer problema, na guerra. A questão não é o crime em si, mas o timing... - o árabe de Camus e o francês de Daoud não valem muita coisa. Harun sabe que não está preso por ter cometido um crime, mas por tê-lo praticado no momento errado.
Ao ser publicado (com estrondoso sucesso) na França e após ter levado o Goncourt, Daoud chamou a atenção de Abdelfatah Hamadache, clérigo islâmico, que o acusou de apóstata e clamou por seu julgamento por blasfêmia. Daoud permanece vivendo em Oran, na Argélia, escrevendo em um jornal de língua francesa. Em certo sentido, permanece um estrangeiro em sua própria terra.
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