Os leitores da Biblioteca já conhecem Georgi Gospodinov (1968) do conto And all turned Moon.
Agora, ainda inédito no Brasil, concluo o surpreendente romance The Physics of Sorrow, sensação na Bulgária, onde o livro se esgotou em um dia. E pensar que tudo começou quando a The Economist publicou uma matéria esculhambando o país (e a Romênia) como o pior membro da União Européia - e, de quebra, atribuindo à Bulgária o título de "o país mais infeliz do mundo". Não à toa, em determinado momento, o narrador fala da palavra "sorrow" (na verdade, quem faz isso é o tradutor: não se esqueça que li a tradução para o inglês de um texto búlgaro..) e da portuguesa "saudade" e da turca "hüzün".
Nasci no final de agosto de 1913 como um ser humano do sexo masculino. Não sei a data exata. Esperaram por mim por dias para ver se eu sobreviveria e então me levaram para o registro. É o que eles faziam com todos (...)
Nasci duas horas antes do amanhecer como uma mosca de fruta. Vou morrer nessa noite logo após o por do sol.
Nasci em 1º de janeiro de 1968, como um ser humano do sexo masculino. Lembro-me de todo 1968 em detalhes, do começo ao fim. Não me lembro de nada do ano em que estamos agora. Não sei sequer seu número.
(...)
Ainda não nasci. Estou a caminho. Tenho menos sete meses de idade. Não sei contar esse número negativo no útero. Sou grande como uma azeitona, pesando um grama e meio. Eles ainda não sabem meu sexo. Minha cauda está desaparecendo gradativamente. O animal dentro de mim está indo embora, junto com sua cauda. Parece que fui escolhido para ser humano. Aqui dentro é escuro e acolhedor, eu estou ligado a algo que se move.
Nasci em 6 de setembro de 1944.
O avô nasceu em 1913; o autor, em 1968. O narrador é toda a família. Para contar a história de sua família, ele se apresenta como alguém capaz de caminhar pelos labirintos das memórias dos outros - mais do que isso: ele pode atuar por eles, assumindo suas identidades, como o fez com seu avô e seu pai. O narrador Georgi Gospodinov se lembra do próprio nascimento, sofre de uma "síndrome somático-empática obsessiva", que o leva à memória de tudo à sua volta - de familiares e vizinhos até animais.
O dom desaparece à medida que Georgi cresce, de forma que nosso personagem começa a colecionar histórias alheias - de uma forma igualmente obsessiva que o leva a sofrer de um complexo de Noé - atribuindo-se uma missão de salvar essas mesmas histórias do apocalipse.
Um romance fragmentado, com o narrador às voltas com viagens físicas e metafísicas: com o dom de mergulhar na mente de pessoas para observar suas memórias; que é o minotauro; que vive no subterrâneo somente saindo à noite para recolher objetos; que viaja pelo mundo comprando histórias e contando-as para nós.
O minotauro. Uma criatura que, ao contrário do que sempre ouvimos, é uma vítima, não um vilão. Um ser incompreendido, abandonado e desprezado, assim como Georgi Gospodinov narrador, que o defende - ao longo dos anos, fui apenas colhendo novas evidências, conta-nos o narrador Georgi - e faz uma associação interessante entre este mito e outro, o de Sherazade.
A física da melancolia parte do mito em seu aspecto mais peculiar: o labirinto. Não apenas como ideia, mas como algo realmente físico: entre as inúmeras listas apresentadas, vemos coisas com formato labiríntico - o cérebro, o intestino, o DNA
Um romance tipicamente pós-moderno, sem uma narrativa linear, mas composto de fragmentos, personagens erráticos, e não exatamente um enredo claramente delineado, exatamente como o labirinto.
Gospodinov - o autor - sabe do que fala. Ele é atacado com frequência por nacionalistas, sendo inclusive ameaçado de morte, sempre após a estrondosa recepção de seus trabalhos entre o grande público.
Um trecho, da edição americana, pode ser lido aqui.
É torcer para que alguma editora brasileira se anime (o romance já está traduzido para o inglês, francês, alemão e italiano).
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