Pular para o conteúdo principal

Conto da semana, de Artur Azevedo

Artur Azevedo.jpg


E  já que, nos últimos dias, só se fala nele, o conto da semana é em sua homenagem. Aqui, O Plebiscito, de Artur Azevedo (1855-1908), um clássico:

A cena passa-se em 1890.

A família está toda reunida na sala de jantar.

O Senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.

Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário-belga.

Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.

Silêncio.

De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:

— Papai, que é plebiscito?

O Senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente, para fingir que dorme.

O pequeno insiste:

— Papai?

Pausa:

— Papai?

Dona Bernardina intervém:

— Ó Seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.

O Senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.

— Que é? que desejam vocês?

— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.

— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?


— Se soubesse não perguntava.


O Senhor Rodrigues volta-se para Dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:


— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!

— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.

— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?

— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.

— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!

— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...

— A senhora o que quer é enfezar-me!

— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!

— Proletário, acudiu o Senhor Rodrigues, é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.

— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!

— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!

— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: “Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho”.

O Senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:

— Mas se eu sei!

— Pois se sabe, diga!

— Não digo para não me humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!


E o Senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.


No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...


A menina toma a palavra:

— Coitado do papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!

— Não fosse tolo — observa Dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!

— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.


— Sim! sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito!


Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:


— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.

O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa e vai sentar-se na cadeira de balanço.

— É boa! — brada o Senhor Rodrigues depois de largo silêncio; — é muito boa! Eu! Eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...

A mulher e os filhos aproximam-se dele.

O homem continua, num tom profundamente dogmático:

— Plebiscito...

E olha para todos os lados, a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição.

— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.


— Ah! — suspiram todos, aliviados.


— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...


O conto da semana volta na semana pós-FLIP.


Comentários

  1. Dois contos estavam presentes em todas as antologias - no tempo em que existiam e eram textos obrigatórios no antigo curso ginasial. Alem do comentado no blog, de Machado de Assis tínhamos "o apólogo" . Vale ser desenterrado pelo blog. E.

    ResponderExcluir
  2. Por falar em contos e em Flip, vale relembrar do livro Alexandre e outros heróis, onde Graciliano fala de pessoa que poe o olho ao contrario e passa a se ver por dentro. Você tem ideia do nome do conto? E.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n