Pular para o conteúdo principal

Conto da semana, de Nuno Costa Santos

João tinha tudo a crédito: a relação com os bancos, os amigos, a vida amorosa, a rela­ção com Deus (se existir), com o Diabo (existe, com certeza), consigo próprio (dúvidas). A mulher aborrecia-o, declamando que era isso que o subjugava à obrigação de apenas sobreviver. Habitavam um 1º esquerdo, acima d’As Suas Possibilidades, o café de um prédio apodrecido, e todos os dias passavam ao lado de Uma Grande Carreira, nome da agência de empregos do bairro, motivo pelo qual haviam sido estrelas de uma reporta­gem satírica, emitida no final do noticiário das oito.

Homem escuro como uma moeda gasta e suspenso como a situação económica de um certo lado do planeta, começou a cansar-se de ser escravo de prestações, humores bancários, cobranças pessoais, ressentimentos com juros. No café onde se cumpria um certo país desconfiado de si, comentou consigo durante uns minutos que era altura de organizar a papelada das decisões para por enfim oferecer à vida um sentido que nunca teve.

Assim começa o conto O Fim da Dívida, do português Nuno Costa Santos, da coleção Biblioteca Digital, do jornal Diário de Notícias, que pode ser baixado gratuitamente (mediante cadastro), a partir daqui. 

A crise econômica tem rendido várias narrativas interessantes - aqui mesmo já comentamos Catástrofe, de Lee Rourke. Bem que merece uma antologia...




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

Conto da semana - Saki

O conto da semana é   A Porta Aberta , de Saki, ou melhor, Hector Hugh Munro (1870-1916). Saki nasceu na Índia; o pai era major britânico e inspetor da polícia de Burma. O autor morreu no front francês durante a I Guerra. Já havia falado dele num post sobre a coleção Mar de Histórias , de Ronai e Aurélio, bem como um curta nacional. Ele está no volume 9. Mas apenas mencionei este conto, de cerca de cinco páginas. O vídeo acima é uma produção britânica de 2004 com Michael Sheen (o Tony Blair do filme "A Rainha") como Framton Nuttel, e Charlotte Ritchie como Vera, a menina de cerca de quinze anos que "faz sala" enquanto sua tia não chega. E começa a contar ao visitante sobre a terrível "tragédia" que se abateu sobre a tia, a Sra. Sappleton. O conto é um dos mais famosos de Saki, conhecido por tratar do lado cruel das crianças.