Pular para o conteúdo principal

Os Malaquias, de Andrea del Fuego


 
Os Malaquias
Andrea del Fuego
Língua Geral, 2011
272 p.

Um gato esticou as pernas, as paredes se retesaram. A pressão do ar achatou os corpos contra o colchão, a casa inteira se acendeu e apagou, uma lâmpada no meio do vale. O trovão soou comprido até alcançar o lado oposto da serra. Debaixo da construção a terra, de carga negativa, recebeu o raio positivo de uma nuvem vertical. As cargas invisíveis se encontraram na casa dos Malaquias. p. 7. Leia, aqui, o primeiro capítulo.

Outro livro que fiquei devendo em 2012, este que recebeu o Prêmio Saramago de 2011. Confesso que não conhecia a autora, Andrea del Fuego (1975), até o anúncio da premiação. 



Nico, de olhos azuis; Antônio, miúdo, e Júlia, barriguda. Os três irmãos que vivem em Serra Morena - são os Malaquias do romance. Com exceção deles, os habitantes eram pardos como mamíferos silvestres. Com a morte dos pais, "de raio", os três órfãos são separados: Nico, o mais velho, vai trabalhar numa fazenda (a fazenda Rio Claro), de Geraldo; os outros dois são levados por freiras francesas - Júlia será adotada; Antônio, no entanto, é anão.

O romance mostra o momento de transição entre um país rural e outro urbano. Geraldo e Nico são forçados a se mudar, com a chegada do progresso e a construção de uma hidrelétrica, que inundará todo o povoado.

Andrea del Fuego homenageia sua família - Nico é seu avô; os pais realmente morreram eletrocutados e Antônio sofria de nanismo. E a partir daí parte para a ficção pura - como, por exemplo, o fim reservado a Nico e a Geraldina Passos (mãe do fazendeiro Geraldo).

No capítulo 63, um grande momento, que mostra a felicidade da escolha das palavras pela autora - Geraldo, de carne já líquida dentro do caixão, tinha o corpo concorrido por colônias de bactérias. Debaixo da terra a nutrição se fazendo à exaustão dos ossos, que, pudessem, morariam em outra câmara escura, com menos acontecimentos. Do próprio corpo é que saíam as colônias famintas, De dentro para fora, o final de Geraldo. Esse, aliás, é o grande trunfo do livro - a cuidadosa, quase um trabalho de ourives, na escolha das palavras certas, das associações de imagens e ideias. Ao mesmo tempo, uma linguagem seca e dura. Uma combinação difícil. Um livro para ser lido com calma.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n