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Mostrando postagens de março, 2012

Conto da semana, de Augusto Monterroso

Augusto Monterroso (1921-2003) é um dos grandes nomes da literatura latino-americana. Seus contos curtos, muitas vezes em tom de fábulas, o tornaram conhecido muito além das fronteiras da Guatemala. Aqui vai A funda de Davi: Era uma vez um menino chamado Davi N., cuja pontaria e habilidade no manejo da atiradeira despertavam tanta inveja e admiração entre seus amigos da vizinhança e da escola, que viam nele — e assim comentavam entre si quando os pais não podiam escutar — um novo Davi. O tempo passou. Cansado do tedioso tiro ao alvo que praticava disparando pedrouços contra latas vazias e pedaços de garrafa, Davi descobriu um dia que era muito mais divertido exercer contra os pássaros a habilidade com que Deus o tinha dotado, de modo que dali em diante a exercitou contra todos os que se punham ao seu alcance, em especial contra Pardais, Cotovias, Rouxinóis e Pintassilgos, cujos corpinhos sangrentos caíam suavemente sobre a grama, com o coração ainda agitado pelo sust

Livro, de José Luis Peixoto

(1948) A mãe pousou o livro nas mãos do filho. Que mistério. O rapaz não conseguia imaginar um propósito para o objeto que suportava. Pensou em cheirá-lo, mas a porta do quintal estava aberta, entrava luz, havia muita vida lá fora. O rapaz tinha seis anos, fugiu-lhe a atenção, distraiu-se, mas não se desinteressou pelo livro, apenas deixou de o interrogar enquanto objeto em si, começou a questioná-lo de maneira muito mais abstrata, enquanto intenção, enquanto sombra de um ato. A mãe disse o nome do filho: Ilídio. José Luis Peixoto (1974) estará na Flip deste ano (já esteve em Parati em 2005). O autor português conta a história de Ilídio, Josué, Adelaide, Lubélia, para falar, verdadeiramente, do movimento de emigração portuguesa para a França durante o regime de Salazar. Curiosamente, a edição brasileira - Companhia das Letras, 2012 - aparece no momento em que Portugal se debate com uma crise econômica de proporções épicas e novo movimento para fora do país. Os pais do autor,

Antonio Tabucchi (1943-2012)

Morreu Antonio Tabucchi (1943-2012), em Lisboa. Um dos maiores estudiosos da literatura portuguesa, vivia em Lisboa, e um dos favoritos da Biblioteca. Meu primeiro contato com Fernando Pessoa foi através de seu livro Os Três Últimos Dias de Fernando Pessoa (Rocco, 1996). Talvez o seu romance mais conhecido seja Afirma Pereira (Rocco, 1995), que deu origem ao filme de Roberto Faenza com uma das últimas participações de Marcelo Mastroianni. O filme conta ainda com Daniel Auteuil (Dr. Cardoso) e Joaquim de Almeida. Uma nota de Tabucchi ao romance, explicando seu "encontro" com o Dr. Pereira. Um encontro a la Pirandello : O doutor Pereira visitou-me pela primeira vez numa noite de setembro de 1992. naquela época, ele ainda não se chamava Pereira, ainda não tinha traços definidos, era algo vago, fugidio e incerto, mas já tinha vontade de ser protagonista de um livro. Era somente um personagem à procura de um autor. Não sei por que escolheu logo a mim para ser

Não diga isso

TABU - Enrique Anderson Imbert (1910-2000)   O anjo da guarda sussurra a Fabián, por cima de seu ombro: - Cuidado, Fabián! Está escrito que morrerás quando disser a palavra "zangolotino". - Zangolotino? pergunta Fabián intrigado. E morre.

A Bala de Juan Becerra e o Executado de David Dephy

São dois os contos da semana. Algo aproxima as histórias, uma dos confins de Europa, outra da vizinha Argentina. Guerras já foram narradas à exaustão, de diferentes formas. Os contos selecionados o fazem sob óticas no mínimo curiosas: Before the End, de David Dephy (BEF 2012, organizado por Hemon) trata de uma execução pelo próprio executado. O georgiano David Dephy inicia assim sua história   (tradução minha):  Os soldados formam em linha. Sou colocado na parede e eles me miram. A ordem do comandante é ouvida. "Fogo". Eles atiram.   O suposto traidor de Dephy descreve seus últimos segundos em três páginas. Lembra-se da infância. E ainda tem tempo para conversar com alguém: a sua morte, que não é, afinal, A Morte. É tempo de esclarecer as coisas: reafirma não ser desertor ou traidor, que tudo não passa de um equívoco. A voz, por outro lado, também: se você quer amar, deve ser capaz de odiar à primeira vista e lutar por aquele a quem odeia. Mas ninguém segue esta

Revista Kalinka

A Editora Kalinka lança sua Revista. Entrevistas com a tradutora Aurora Bernardini e Evguiéni Pasternak (o filho de Boris), além de um poema de Mikhail Liermontov e o conto O Paramédico, de Leonid Dobytchin -  aqui.  

GUERRA E PAZ (5)

E chego ao fim daquela que, para Daniel Piza, é a maior epopeia escrita desde a Odisseia... O Epílogo é dividido em duas partes: na primeira, sabemos que Natasha e Pierre se casaram em 1813, mesmo ano da morte do conde Rostov, que implora o perdão da família pela ruína econômica. Nikolai aceita a herança do conde; no outono de 1814, casa-se com Mária. Anos depois, Natasha está fisicamente irreconhecível; mãe de quatro filhos e totalmente devotada a eles e a Pierre. O extremo oposto da Natasha que nos foi apresentada no início do romance. O filho de Andrei, Nikolienka, agora tem 15 anos e venera Pierre. Vive agora com Nikolai, que pagou todas as dívidas do velho conde e agora prospera. E é justamente Nikolienka quem encerra a primeira parte (e, a rigor, o romance): “E o tio Pierre! Ah, que homem incrível! E o pai? O pai! O pai! Sim, eu farei coisas que até ele iria admirar...”. A rigor, estas são as últimas frases do romance. E os personagens ficam para sempre na cabeça dos le

Conto da semana, de Maritta Lintunen

  O conto da semana é de Maritta Lintunen - Semana Santa - e integra a antologia Best European Fiction (BEF 2012).   Um dos melhores contos do volume, diga-se. Trata-se da narrativa, em primeira pessoa, da história de uma mulher e o que lhe sucede ao recobrar os sentidos após um terrível acidente doméstico, durante a Semana Santa. Momentos de desespero, de memórias e de solidão. Li o conto poucos dias depois de sofrer da minha já famosa crise de hérnia de disco num quarto de hotel em Brasília, e confesso que me lembrei imediatamente do meu próprio incidente. O principal mérito do conto é a forma como a autora mostra os pensamentos que vêm à mente da narradora enquanto espera por um hipotético socorro. Talvez o mais correto seja afirmar que esperava pela morte. Ela se recorda das várias histórias de decadência humana que me contaram ao longo dos anos para me confortar, diz, ao se referir à morte súbita de Ilmari, enquanto imagina um destino bem diferente para ela própria. El

GUERRA E PAZ (4)

Incêndio de Moscou, Smirnov (1813) O Livro 4 é bem "curto" para os padrões: quase 400 páginas. O incêndio de Moscou é o acontecimento mais marcante de seu início, ao qual irá se seguir a retirada atabalhoada de Napoleão. A retirada de Moscou Pierre, que se fez prisioneiro para matar Napoleão, conhece Platon Karatáiev, que apesar de merecer poucas páginas no romance (mais exatamente o capítulo XIII da Primeira Parte), é um personagem marcante - simboliza aquilo que Tolstoi vê de mais autêntico no homem russo: Platon Karatáiev devia ter uns cinquenta anos, a julgar por suas histórias sobre as campanhas militares de que havia participado como soldado veterano. Ele mesmo não sabia sua idade e não havia meios de determinar quantos anos tinha (...) Seu rosto, apesar das pequenas rugas redondas, tinha uma expressão de inocência e juventude; sua voz era agradável e melodiosa. Mas a peculiaridade mais importante do seu modo de falar era a espontaneidade e a pr

O Obituário de Deus, de Fernando Paiva

O conto da semana é brasileiro, e pode ser lido  aqui.   Em forma de obituário de jornais e revistas, Paiva nos comunica a morte do pai da Arquitetura Genética, Allan J. Winchmaster. Conhecido como Deus.  As regras que criou lembram as Três Leis dos Robôs de Isaac Asimov: todos os seres desenhados são estéreis; todos devem ser menos inteligentes que o homem; todos devem estar em eterno cativeiro. O Tratado internacional lembra o de não proliferação de armas nucleares.  Como toda grande descoberta, foi usada indevidamente para fins militares, com a criação dos guerreiros ortopédicos kamikazes... e as inteligências, cada vez mais desenvolvidas, ameaçavam a segunda lei e a própria sobrevivência humana. Por fim, Deus, perseguido por religiosos e pela indústria, é protegido pelo serviço secreto britânico.  O conto evidencia mais uma vez a capacidade criativa do homem e a incapacidade de controlar os resultados. O avanço tecnológico é visto como o que é - uma evolução, não necessari

GUERRA E PAZ (3)

Uma hérnia de disco inesperada e uma semana de molho, e lá se foram as quase 700 páginas do Livro 3, que tem seu ápice na Batalha de Borodino. Tolstoi também fala de suas  teorias sobre a História: Se dependia da vontade de Napoleão oferecer a batalha ou não e se dependia da sua vontade dar uma ordem ou outra qualquer, então é evidente que um resfriado, capaz de influenciar a manifestação da sua vontade, podia ser a causa da salvação da Rússia e, portanto, o camareiro que no dia 24 esqueceu de dar a Napoleão as botas impermeáveis foi o salvador da Rússia. Nessa linha de raciocínio, tal conclusão é indiscutível – tão indiscutível quanto a conclusão que, de zombaria (sem que ele mesmo soubesse de que estava zombando), fez Voltaire ao dizer que o massacre da noite de São Bartolomeu ocorreu por causa de uma indigestão de Carlos IX. Mas, para as pessoas que não admitem que a Rússia tenha sido formada pela vontade de um só homem – Pedro I – nem que o império francês tenha se constituíd

Heitor Villa-Lobos

Aniversário de Villa-Lobos. Bachianas nº 4

Conto da Semana, de Gyrdir Elíasson

A Biblioteca chega à Islândia para o conto da semana, de Gyrdir Eliasson (1961), direto do incrível site Words Without Borders. O texto pode ser lido, em inglês,  aqui.   O título - House 451 - faz referência óbvia à obra de Ray Bradbury Farenheit 451. O futuro desolador - como aquele descrito por Gospodinov - em que os livros foram banidos há muitos anos (estamos em 2072 e o narrador é nostálgico a respeito de 2012). O título de Bradbury alude à temperatura na qual o papel e o livro se incendeia.  A Casa 451 é uma casa construída em 2010 já sem vida e sem memória. O narrador mora na casa ao lado. O ato de escrever é tão antigo e anacrônico quanto uma casa de 2010; sua mulher não vê seu hábito com bons olhos; suas filhas estão no quarto, jogando com realidade virtual. Nenhum livro na casa, como em nenhum outro lugar, já que foram, há muito tempo, banidos.