Klepsydra. O sanatório situa-se no fundo do vale, do outro lado de uma passarela com corrimão instável feito de galhos de bétula. Trata-se de uma grande edificação em forma de ferradura, dirigida pelo dr. Gotard, descobridor da reversão do tempo. Graças a essa singular descoberta, tudo na clínica está levemente atrasado e, em consequência, pacientes que acreditamos terem morrido em outro lugar ainda estão vivos quando chegam. No entanto não se podem erradicar totalmente suas mortes, que deixam certos traços em suas existência (...) Tudo o que se pode dizer com certeza é que o passado foi reativado e que há, portanto, uma possibilidade de recuperação.
Essa descrição do Sanatório está no incrível Dicionário de Lugares Imaginários, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi.
Achei essa edição (Editora Imago, 1994, tradução de Henryk Siewerski), que acreditava esgotada, na Livraria da Travessa no Rio, há menos de um mês. Creio que posso dizer que, agora, tenho suas obras completas - já tinha, da mesma editora, Lojas de Canela.
O dr. Gotard tenta explicar a José, o narrador, como as coisas funcionam:
- Todo o nosso truque – acrescentou, disposto a demonstrar seu mecanismo nos dedos já devidamente preparados – é atrasar o relógio. Aqui estamos sempre atrasados no tempo um certo intervalo, cuja amplitude é impossível definir. A questão se reduz a um simples relativismo. Aqui a morte do seu pai, a mesma que já ocorreu na sua pátria, ainda não o alcançou (p. 161).
As pessoas lá passam a maior parte dormindo; lá não funciona a linha do tempo, totalmente fragmentada. Um lugar imune ao tempo. Ao final, um exército estrangeiro invade a cidade. José deixa o Sanatório, aliviado – é sorte que no fundo meu pai já não esteja mais vivo, que, na verdade, isto já não o atinja – penso aliviado, e vejo na minha frente uma fila de vagões prontos para partir (p. 183).
Bruno Schulz, o autor do conto da semana, nasceu em Drohobycz, atualmente na Polônia mas, à época (1892), um pedaço do Império Austro-Húngaro. Seus contos são, como ele próprio admitia, um “romance autobiográfico”. Seu pai, Jacob, era comerciante e possuía uma loja de tecidos, e é evidente a sua presença nos contos que chegaram até nós.
Sempre comparado a Kafka, traduziu seu O Processo para o polonês em 1936. No livro Entre Nós (Companhia das Letras, 2008, tradução de Paulo Henriques Britto), Philip Roth entrevista Isaac Bashevis Singer, que afirma:
Saí da Polônia em 1935. Na época, Schulz não era bem conhecido – e se era conhecido, eu não sabia nada sobre ele. Nunca tinha ouvido falar nele. A minha primeira impressão foi: este homem escreve parecido com Kafka. Há dois escritores que, segundo se diz, escrevem como Kafka. Um deles era Agnon (...) Mas quanto mais eu lia Schulz – talvez eu não devesse dizer isto – eu dizia: ele é melhor do que Kafka. Alguns de seus contos têm mais força. Além disso, ele é muito forte no absurdo, mas não de maneira ingênua, e sim inteligente. Eu diria que entre Schulz e Kafka existe uma coisa que Goethe chama de Wahlverwandtschaft, uma afinidade de almas que a própria pessoa escolhe. Pode ter sido isso que ocorreu com Schulz (...).
No último conto da edição – A Última Fuga do meu Pai – o (único) personagem de todos os textos de Schulz transforma-se num caranguejo – ou um grande escorpião, considera o narrador – e é imediata a lembrança d’A Metamorfose...
Além de escritor, era desenhista - a edição que tenho traz dois desenhos, inclusive um autorretrato.
No inverno de 1942, foi morto com um tiro na cabeça, no meio da rua, por um oficial alemão.
Comentários
Postar um comentário