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Madame Bovary, de Gustave Flaubert (I)


Um exemplo dos mais didáticos sobre como literatura não se resume a enredo: um adultério envolvendo personagens provincianos. Ao menos no Brasil, gerações de estudantes de ensino médio são estimuladas a passar ao largo de um dos maiores romances já escritos; a "'maravilha do mundo' entre todos os romances", "o primeiro romance rigorosamente construído como um poema", cuja "releitura e re-releitura sempre fazem descobrir concatenações inesperadas", dizia Carpeaux.

Em Flaubert, o estilo é o grande destaque; o trabalho de ourivesaria na construção das frases, da preocupação em encontrar a palavra correta. Poucas vezes isso será tão evidente como em Madame Bovary e, neste romance, em momentos como o da descrição da exposição agrícola - os anúncios dos prêmios para o progresso - e as conversas entre Emma e Rodolphe, o primeiro de seus amantes (que dela irá se livrar sem maiores arrependimentos). Um falando platitudes sobre a política, o outro, platitudes sobre amor e sedução. O estilo cuidadoso ao extremo também é evidente na preparação do corpo de Emma, já ao final. 

O primeiro personagem a surgir no romance é justamente Charles, ainda criança - cujos traços já antecipam o adulto em que irá se tornar. Um medíocre médico de província, sem qualquer ambição na vida. Emma Bovary começa e termina com Charles. Emma irá eclipsar Charles, é claro, e a história se torna o seu romance e a sua tragédia. Um momento marcante é a conversa do pai com a filha, convencendo Emma a se casar. Essa conversa, capital, é a desgraça da filha, que logo se decepciona com a nova vida e com o marido:

A conversa de Charles era chata como uma calçada de rua e nela as ideias de todo mundo desfilavam em seu costume ordinário, sem excitar emoção, riso ou sonho. Nunca tinha tido a curiosidade, dizia ele, enquanto morava em Rouen, de ir ver no teatro os atores de Paris. Não sabia nem nadar, nem combater, nem atirar com revólver, e não pôde, um dia, explicar-lhe um termo de equitação que ela tinha encontrado num romance.

Emma tem certamente muito de Quixote. Ambos são grandes leitores e têm suas visões de mundo e, consequentemente, suas vidas, desviadas por essas mesmas leituras. Ambos, é verdade, foram avisados e aconselhados a ler menos, ainda que Emma não tenha tido a "ajuda" do cura, que se preocupou em jogar na fogueira obras por demais perigosas para a pouca sanidade de Alonso Quijano.

Flaubert escreveu em 1857; menos de meio século mais tarde, Tchekov criaria Macha, uma das Três Irmãs, casada com Kulygin aos 18. A mediocridade do marido a leva ao desespero. A vida na província não é para nenhuma delas.

Além de Rodolphe, há Léon, o segundo amante, estudante de direito em Paris (como Flaubert). Há indícios de que Charles seja, de fato, um retardado - como quando ele encontra a suposta professora de piano de Emma, que jamais ouvira falar da aluna... 

Homais, no entanto, é um personagem mais interessante que os amantes. Farmacêutico da província, fala e escreve artigos para o jornal da província (absolutamente irrelevante); é um amontoado de clichês e incoerências - admira Voltaire e é supersticioso em relação à morte, por exemplo. É o representante do espírito da nova classe ascendente, que Flaubert tanto detesta.

Flaubert descreve o trágico fim de uma devedora de título de crédito - as notas promissórias que assina geram uma dívida monstruosa e impagável. Lheureux, seu credor, é implacável. Mestre Hareng, o oficial de justiça, entra em sua casa para fazer a penhora dos seus bens. Seu fim está selado.

Curiosamente, após a morte de Charles, o destino de sua filha, Berthe, é apresentado em meia linha: a pobre criança vai para uma tia, que se encarregou dela: Ela é pobre e a manda, a fim de ganha a vida, para uma fábrica de fios de algodão". 

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