Pular para o conteúdo principal

Fala, Memória, de Vladimir Nabokov

Fala, Memória
Vladimir Nabokov
Objetiva/Alfaguara
tradução de José Rubens Siqueira

Uma grande autobiografia essa de Nabokov, que vai de sua infância na Rússia até a chegada aos Estados Unidos, em 1940. Desde o prefácio, quando mostra que pretendia dar um título diferente à obra (no caso, Fala, Mnemosine, mas seu sábio editor o advertiu para evitar títulos impronunciáveis por velhinhas), até o inédito apêndice.

Uma infância cosmopolita em São Petersburgo, em uma família que falava tranquilamente quatro idiomas, passava os invernos na Rússia e em Biarritz. Tutores, jardineiros - uma multidão de funcionários gravitava em torno da estrela Nabokov. Até que, um belo dia, esse idílio é varrido do mapa, em 1917.

Há uma descrição cuidadosa (melhor: orgulhosa) de sua árvore genealógica; ficamos sabendo do papel desempenhado por seu pai como um importante político social-democrata que acabou (como quase todos) tragado pelos comunistas... o relacionamento com os tutores e demais empregados.

E, de forma especial, seu relacionamento (já adulto) com os russos expatriados que vagavam pela Europa. Tem-se a impressão de que estamos falando de verdadeiros zumbis, vivendo num mundo que não lhes pertencia. Sua observação sobre a forma como os europeus os encaravam é muito interessante:

Em algum lugar no fundo de suas glândulas, as autoridades secretavam a noção de que por pior que fosse um estado - digamos, a Rússia soviética - qualquer fugitivo dela era intrinsecamente desprezível, uma vez que ele existia fora de uma administração nacional; e portanto era visto com a absurda reprovação com que certos grupos religiosos veem uma criança nascida fora do casamento

Nabokov não faz o gênero do expatriado revoltado com a pobreza. Numa das melhores passagens do livro:

A seguinte passagem não é para o leitor comum, mas para o idiota particular que, por ter perdido uma fortuna em algum crash, acha que me entende.

Minha velha (desde 1917) briga com a ditadura soviética não tem qualquer relação com questões de propriedade. É total o meu desprezo pelo emigrado que "odeia os vermelhos" porque eles "roubaram" seu dinheiro e sua terra. A nostalgia que venho alimentado todos esses anos é uma sensação hipertrofiada de infância perdida, não de tristeza por dinheiro perdido.

E finalmente: reservo a mim mesmo o direito de sentir saudade de um nicho ecológico:

...Sob o céu
de minha América suspirar
por uma localidade na Rússia

O leitor comum pode agora retomar.

Por mais que saibamos de seu interesse no xadrez e nas borboletas, os trechos - longos - dedicados aos assuntos interessam, apenas, aos que, como ele, compartilham essas paixões. É, para mim, o único senão ao livro, mas que em nada prejudica a constatação de que poucos escritores conseguem uma prosa tão elegante quanto Nabokov (o que se vê de forma mais evidente quando se dedica a falar do pai - sem qualquer pieguismo, mas com indisfarçada fascinação.

Vladimir Nabokov (à esq.) aos sete anos de idade, ao lado do pai






Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei...

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa...

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n...