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Joseph Anton, de Salman Rushdie

Joseph Anton - Memórias
Salman Rushdie
Tradução: Donaldson M. Garschagen e José Rubens Siqueira
Companhia das Letras
614 p.

O primeiro presente que recebera do pai, um presente semelhante a uma mensagem numa cápsula do tempo, que ele não compreendeu até virar adulto, foi o nome da família. 'Rushdie' foi uma invenção de Anis. O nome do pai dele fora bem imponente, Khwaja Muhammad Din Khaliqi Dehlavi, um belo nome da Delhi Antiga que caía como uma luva naquele cavalheiro da velha guarda que nos fitava fixamente da única fotografia dele que sobrevivera, aquele industrial bem-sucedido e ensaísta nas horas vagas que morava num haveli caindo aos pedaços no famoso e antigo mulhala, ou bairro, de Ballimaran, um labirinto de vielas sinuosas na área do mercado de Chandni Chowk, onde vivera Ghalib, o grande poeta de língua parsi e urdu. Muhammad Din Khaliqi morreu jovem, deixando ao filho uma fortuna (que ele dilapidaria) e um nome pesado demais para se carregar no mundo moderno. Anis adotou um novo nome, 'Rushdie', devido à sua admiração por Ibn Rushd, conhecido no Ocidente como Averróis, o filósofo árabe-espanhol de Córdoba, do século XII, que veio a tornar-se cádi, ou juiz, em Sevilha,tradutor e aclamado comentarista das obras de Aristóteles. O filho de Anis usou o nome durante duas décadas antes de compreender que inteiramente destituído de fé religiosa, o escolhera por respeitar Ibn Rushd, que assumira, em sua época, a vanguarda da crítica racionalista ao literalismo islâmico. E outros vinte anos transcorreram antes que a batalha com relação a Os Versos Satânicos produzisse um eco, no século XX, daquela crítica de oitocentos anos. página 28-29.

As memórias de Salman Rushdie, narradas em terceira pessoa. Nesse que foi o primeiro livro que li dele até hoje, descobri algumas coisas: não sabia que ele já tinha uma carreira literária bem consolidada; seu romance Os Filhos da Meia Noite já havia lhe rendido o prestigioso Man Booker Prize de 1981. Ele já conhecia todo o ambiente literário londrino - e ao longo do livro, irá elogiar os que o ajudaram e esculhambar os que o atacaram. Ele é grato a Norman Mailler, Nadine Gordimer, Edward Said, Ishiguro, McEwan e Grahan Greene, por exemplo. Martin Amis e Christopher Hitchens lutaram publica e abertamente por ele. Ele, que foi convidado para subir ao palco com o U2!

Por outro lado, desanca John Berger, o arcebispo anglicano de Canterbury, Road Dahl e John Le Carré, todos justificando a fatwa. Nenhuma simpatia por Thatcher, ao contrário de Major e Blair.

Life on the run: Indian-born author Salman Rushdie adopted the alias Joseph Anton - merging forenames of authors Conrad and Chekhov - after a fatwa was issued against him

Joseph Anton foi o pseudônimo em homenagem a Conrad e Tchekov, e venceu outras tentativas como Vladimir Joyce e Franz Sterne.

Seu inferno começou em 14 de fevereiro de 1989, quando Khomeini emitiu a fatwa que mudou sua vida e a de muitos outros. No livro, Rushdie nos conta dos problemas com suas ex-mulheres, com os agentes de segurança, editores que na hora H temeram repercussões negativas e lhe fecharam as portas, suspendendo contatos e contratos. Passou a ser sistematicamente recusado pelas companhias aéreas.

Os tais versos: ele aprendeu quando estudava História em Cambridge, em 1966. O Profeta recebeu versos do Demônio, desmentidos pelo Arcanjo... por que, então, tomou-os por verdadeiros e não os excluiu do Corão? Esse é o tema central do seu romance mais famoso.

Um dado impressionante: ele escapou, mas o tradutor japonês foi assassinado e o italiano, quase. O tradutor turco sofreu um atentado que matou mais de 30; o norueguês sofreu um ataque - e disse a Rushdie o quanto se orgulhava de estar associado ao livro.

Rushdie reconhece, não esconde nem procura justificar suas ingratidões - por exemplo, com Liz Calder, por aqui conhecida como a grande idealizadora da Flip - e suas atitudes mesquinhas, que não são poucas. Méritos para ele, mas nem por isso se deixa de criticá-lo. E algo que - até onde vi - não vem sendo tão comentado nas resenhas: sua relação com Zafar, o filho que, conforme ele mesmo reconhece, não conseguiu ter uma infância normal por causa do pai. A pessoa com quem ele mais se preocupou durante todo o período.

Por fim, não deixe de ler as "cartas" que ele escreveu para diversas personalidades - sobra até para Robinson Crusoé...

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