Pular para o conteúdo principal

Timoféiev, de Leonid Dobytchin


O Conto da Semana é do russo Leonid Dobytchin (1894-1936) e integra o volume Encontros com Lis e outras histórias, da parceira do blog, Editora Kalinka. Autor das primeiras décadas da finada União Soviética, é equiparado a Babel e Kharms. 

Reprovado no exame, Timoféiev nem foi almoçar. Dirigiu-se direto para casa, tirou a jaqueta e deitou-se para dormir. Atarracado, com o rosto cinzento e a barbicha amarela desgrenhada, ele deitou-se de costas e começou a roncar. Sobre sua testa, curvando-se como varas de pescar, pendiam algumas mechas inconsistentes, às quais aderiam os cabelos ralos. A camisa azul de cetim desbotada escapou do cinto, e, entre ela e a calça, apareceu a camisa de baixo, manchada por um percevejo esmagado. Moscas assentavam no seu rosto - ele gemia e as afugentava com a mão, mas não acordava. Só foi acordar de noite, após o pôr-do-sol, com a luz ardendo numa lâmpada, largada num canto qualquer depois de uma noite longa de estudos, e a torneira aberta. Ele saltou da cama e, pondo os pés no chão, começou a esfregar os olhos com o punho da manga esquerda segurando-o com a mão direita. - Preciso pedir um samovar - disse a si mesmo e foi atrás da senhoria. Ela não estava em casa, e ele foi procurá-la no quintal.

Uma lua vermelha, pesada e opaca, como uma meia-lua de marmelada, espiava nos quintais. No poente vermelho, faixas cor de poeira se apagavam, como pó varrido e largado no canto da soleira. Tudo estava em silêncio, e a senhora, sentada num degrau da entrada, envolta num lenço grande, não se mexia, sequer piscava, deleitando-se com a tranquilidade e a quietude. Timoféiev, calado, sentou-se no degrau de cima. Eles ficaram assim, mudos e imóveis, com os olhos fixos no céu. O apito de uma locomotiva soou longe. A senhoria deu um suspiro baixo e sussurrou: - É a finlandesa. - Que finlandesa? - perguntou Timoféiev, susssurrando. - A estrada de ferro finlandesa. Eles se calaram outra vez e ficaram sentados ainda por muito tempo, quietos e retraídos, até ouvirem uma janela abrir e alguém gritar de lá: - Dária Ivánova, onde você está?  Não seria possível um samovar? - Para mim também, por favor - disse Timoféiev, então se levantou e foi para o quarto.

Pensativo, ele engolia o chá e mastigava o pão de farinha fina: algo muito importante, assim lhe parecia, aconteceu naquele instante, enquanto ele estava sentado na escada e olhava o céu toldado, que prometia chuva para amanhã.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei...

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa...

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n...