O chapéu de Vermeer
Timothy Brook
Record, 2012
Tradução: Maria Beatriz de Medina
278 p.
O que um pintor conhecido pelos belos quadros reproduzindo os interiores dos lares e das famílias holandesas tem a nos dizer a respeito da primeira onda da globalização, no século XVII? E sobre a China da dinastia Ming? O canadense Timothy Brook é professor de História da China na Universidade de Oxford escreve um livro de história, um livro sobre a expansão europeia e a busca (sim, desde o século XVI) pelo eldorado chinês. E usa como fio condutor de seu trabalho cinco quadros de Vermeer, um de van der Burch, outro de Leonaert Bramer e um prato do Museu Lambert van Meerten, em Delft.
Na única paisagem ao ar livre que produziu, Vista de Delft, vemos o porto fluvial e os escritórios e armazéns da VOC, a mitológica Companhia das Índias Orientais, a primeira grande sociedade anônima, fundada em 1602 e extinta em 1800. Para Proust, era o quadro mais belo do mundo.
Oficial e Moça sorridente - este é o quadro em que vemos o chapéu de Vermeer do título. Um chapéu feito de pele de castor, o que nos remete à América do Norte e as expedições de Samuel Champlain pelo Canadá, na tentativa de dominar os rios e as rotas comerciais. Os europeus farão alianças com tribos, em geral pretendendo evitar que os Mohawks atrapalhem o comércio da pele de castor. Mas, na verdade, o interesse principal era chegar à China - desde Cartier os europeus tentavam atravessar os rios e lagos canadenses para chegar à sua meca. O comércio funcionava porque os europeus achavam que estavam passando os nativos para trás - mas estes pensavam exatamente o mesmo. Todos achavam que lucravam...
Em Leitora à janela somos levados a prestar atenção à fruteira. A moça lê uma carta que pode ter vindo das Índias Orientais holandesas. O Tratado de Tordesilhas levou outros países à pirataria. Aqui, Brook nos leva à figura de Hugo Grotius; o jovem advogado de Delft foi contratado pela VOC para justificar a ideia de que a captura de um navio - no caso, o Santa Catarina de Portugal, não configuraria pirataria, mas um legítimo ato de defesa. O argumento mais ousado: todos os povos têm o direito de comerciar. Foi a primeira formulação de algo que até hoje está em vigor. Ora, se o comércio era livre, Portugal e Espanha não poderiam abolir esse direito, e o fato de um povo não se converter ao cristianismo não justificaria uma guerra contra ele.
Talvez os capítulos mais interessantes sejam o quinto - Escola do Fumo - e o sexto - Pesando a Prata. No primeiro, Brook mostra como o fumo conquistou o mundo, desde Colombo. E conta curiosidades como esta:
A expressão mais comum na época para designar o hábito de fumar era chi yan "comer fumaça". O problema era que a expressão chi yan tinha o mesmo som da expressão 'comer a capital'. Yan era fumaça, mas, escrito com um caractere diferente, era o antigo nome da região de Beijing. Comer Beijing era exatamente o que os guerreiros manchus e rebeldes camponeses ameaçavam fazer naquele exato momento.
Logo, fumar ou comercializar o fumo virou crime; a pena, a decapitação. Brook mostra como o fumo começou visto como um ato saudável - até recomendado para aliviar dor de dente, mordida de cobra, convulsões, frio, fome e... asma! E como esse hábito passou pelas transformações - se todos fumavam, os ricos tinham de fazê-lo de forma diferente, que evidenciasse sua alta classe, além de uma verdade que não mudou 400 anos depois:
E quando os fumantes pagam quantias enormes para comprar alguma coisa, os Estados começam a cobrar tributos enormes quando essa coisa atravessa a fronteira.
No segundo, sobre a prata: Vermeer viveu no apogeu deste metal. São moedas de prata que pesa a moça do quadro - de época em que a moeda valia o que pesava, e não o valor nela gravado. Provavelmente, a prata era de Potosí. Brook nos mostra como a VOC atuou no comércio do metal no mercado asiático. Manila era o ponto de encontro entre europeus e chineses. Numa passagem curiosa, percebemos a falta que o conhecimento dos clássicos pode fazer:
O primeiro comandante espanhol a chegar a Manila convenceu Soliman a lhe conceder terras na ilha. Usou um antigo ardil, emprestado da Eneida, de pedir um pedaço de terra do tamanho do couro de um boi. Como conta indignado um escritor chinês (...) os francos cortaram o couro de boi em fatias e uniram-nas pelas pontas até um comprimento de 12 quilômetros, que usaram para marcar o terreno e depois insistiram com o rajá para que cumprisse a promessa (...) a expressão 'perder o país por um couro de boi' entrou no léxico chinês.
Virgilio deve ter sentido orgulho... Timothy Brook apresenta, assim, como que conversando com o leitor, as conexões da história. A partir de Vermeer somos apresentados às transformações que o mundo sofria no século XVII, sua atmosfera social, cultural e econômica. Um livro recomendado para quem gosta de Vermeer, mas sobretudo para quem também se interessa pela história.
Este deve ser mesmo um magnifico livro, que complementará, certamente, outro estupendo livro sobre o inicio da globalização, que é "1421 - O ano em que a China descobriu o mundo" , de Gavin Menzies, (Bertrand Brasil, tradução de Ruy Jungmann. Vou encomendar meu exemplar já. Obrigado pela resenha.
ResponderExcluirComecei a lê-lo este fim--de-semana, e estou a gostar muito. É muito elucidativo, de uma forma, suave, sobre a história comercial de todo o século XVII.
ResponderExcluirComecei a lê-lo este fim--de-semana, e estou a gostar muito. É muito elucidativo, de uma forma, suave, sobre a história comercial de todo o século XVII.
ResponderExcluirestou a fazer um trabalho de sociologia a partir deste livro e estou encantada. Que bela viagem ao passado da humanidade e tudo parece tão atual.
ResponderExcluir