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Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio, de Herta Müller

Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio
Herta Müller
Tradução de Claudia Abeling
Editora Globo Livros (selo Biblioteca Azul)
2012, 248 páginas


Esta foi uma semana "Herta Müller", autora que até o início do mês jamais tinha lido. Este livro reúne diversos artigos, ensaios e discursos - inclusive o que proferiu ao receber o Nobel de 2009. Não se trata, portanto, de um romance, como informam vários sites de compras - e várias livrarias - mas de um livro que me fez lembrar vários outros:

Herta Müller é alemã nascida na Romênia, pertencente à minoria alemã do Banato. Suábios do Banato. A minoria sempre se manteve fiel à tradição alemã e ficou extremamente empolgada com a chegada dos nazistas durante a Segunda Guerra. O pai e o tio da autora, por exemplo, integraram o Exército e a SS. Ela não esconde isso, e deixa claro o seu constrangimento. Evidentemente, este apoio de uma minoria ao invasor do país em que vive teve um preço a ser pago - e aí me lembro do extraordinário Pós Guerra, de Tony Judt, que conta como, nos primeiros anos depois da derrota alemã de 1945, houve uma infinidade de deslocamentos populacionais e grandes massacres de minorias - em muitos casos, com mais mortes do que propriamente durante o conflito.

Outro ponto importante é a descrição do fardo que a polícia secreta representou na vida de todos os romenos e alemães - a Securitate, o regime comunista, Ceausescu. Apesar de não abordar o caso romeno, o livro de Tina Rosenberg, Terra Assombrada, conta uma história que se encaixa com perfeição no contexto: com o fim da Alemanha Oriental muitos alemães foram procurar seus próprios dados nos arquivos da Stasi. A surpresa foi que as informações que os agentes dispunham eram de tal forma detalhadas, precisas e íntimas que logo se percebeu o tamanho do problema: o informante era o próprio cônjuge. Assim, depois da queda do Muro, da reunificação do país e da abertura dos arquivos, houve uma avalanche de pedidos de divórcios - muitas vezes os dois cônjuges espionavam um ao outro. A situação, que pode ser encarada até com certa comicidade, mostra a intensidade do regime.

Herta é, também, Cristina, a inimiga do Estado. Ela conta como o regime procurou fazer com que todos acreditassem que ela era não uma perseguida política, mas uma de suas espiãs e agentes. Era a forma perfeita de desmoralizá-la; uma forma de acabar com sua credibilidade - com resultados e repercussões que ultrapassaram em muito 1989. E uma lista de autores aos quais teve acesso clandestinamente: Soljenitsin, Thomas Bernhard, Handke, Daniil Harms, Klemperer, Canetti e Pastior.

Alguns trechos muito atuais - pois até hoje existem ditaduras de todos os matizes. Algumas duram desde sempre e não param de nos assustar, como a do Irã. Outras, como a da Rússia e a China, vestem-se com roupas civis, liberalizam sua economia - mas os direitos humanos estão longe de se desgrudar do stalinismo ou do maoísmo. E há as semidemocracias do Leste Europeu, que de tanto tirar e por as roupas civis desde 1989 já quase as rasgaram.


E, em qualquer hipótese, sob qualquer circunstância, lembra-nos: “A literatura fala com cada um individualmente – ela é a propriedade privada que permanece na cabeça. Nada mais fala de maneira tão incisiva conosco que um livro. E não espera nada em troca, exceto que pensemos e sintamos” – conclui seu discurso de agradecimento à Academia Sueca. 

Para quem lê em alemão - o que não é o meu caso - algumas curiosidades, como a associação que ela faz entre palavras como lesen (leitura) e leben (vida) e schreien (gritar) e schreiben (escrever). 

E uma situação que ocorreu quando ainda era criança:
 
“Certa vez, na festa da escola, fui escolhida para recitar no palco um poema do partido. Decorei-o durante semanas. Mas, na hora de me apresentar, fui tomada por um pânico de gaguejar e isso significaria envergonhar a escola, o partido, o vilarejo todo, provavelmente a pátria (...) Eu me segurei, não soltei mais o botão e, por desespero, em vez de falar “O partido” como título do poema, falei “A andorinha”.
 
“Fui castigada pela direção do colégio, duas semanas fechada em casa, quer dizer, eu não podia deixar minha casa durante todas as férias de inverno. E é claro que o vizinho soube disso (...) Ele se divertia com a minha reclusão: ‘já que você é tão burra como sua andorinha, podia ter dito logo que a andorinha está voando para fora do partido’.

A questão que atravessa todos esses discursos e ensaios que formam o livro pode ser sintetizada numa pergunta feita pela própria autora, observando refugiados do Kosovo: eles escaparam da guerra em casa, pensei, os pés se ergueram e partiram - mas e a cabeça?
 

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