Pular para o conteúdo principal

Judas, de Amós Oz


Judas
Amós Oz
Tradução: Paulo Geiger
Companhia das Letras, 362p.



Amós Oz (1939) é um daqueles autores candidatos quase que vitalícios ao Nobel, que teima em ignorá-lo. Azar da Academia. Oz, crítico ferrenho do atual governo israelense e ídolo da esquerda, lida há tempos com essa sua peculiar condição. É odiado pela direita, que o enxerga como um traidor da causa israelense, ao defender a coexistência de dois estados. Adorado pela esquerda, não o é sem polêmicas, principalmente por ter apoiado algumas operações militares recentes.

Os traidores são os que mais amam, são aqueles que estão à frente do seu tempo

Shmuel Asch, depois de ser abandonado pela noiva, ver os pais falirem e, em consequência, perder a oportunidade de prosseguir seus estudos, acaba trabalhando como interlocutor de um idoso, Guershom Wald, que vive com uma misteriosa mulher, Atalia Abravanel, sua nora. Ela foi casada com Misha Wald, que foi cruelmente morto pelos árabes na guerra de 1948. O pai de Atalia, Shatiel, foi um sionista à sua maneira: defendia uma nação, mas não um Estado (era contra todos eles); um território a ser ocupado por judeus e árabes, sob mandato internacional. Logicamente, logo é expulso do movimento.

Shmuel estuda a figura de Jesus sob o ponto de vista dos judeus. Não se convence da narrativa oficial a respeito de Judas: por que um sujeito rico (o único apóstolo realmente abastado) se venderia por trinta moedas? Por que alguém pagaria pelo beijo em Jesus, que era uma figura conhecida e pública - e que nunca se escondeu de ninguém? E teoriza que ele, Judas, seria seu mais fiel seguidor; o único a morrer com Cristo e a realmente acreditar que ele não morreria na cruz (pelo contrário, estaria forçando-o a se revelar perante o mundo). 

Logo, se Cristo não pensava em fundar o cristianismo (nasceu e morreu judeu) e os demais apóstolos - segundo o raciocínio da trama - não acreditavam tanto assim no seu líder, Judas teria sido o primeiro verdadeiro cristão. Um dos grandes momentos do romance é o capítulo 47 - Oz transforma Judas no narrador:

Mas eu ignorei a maldição da figueira. Eu insisti em levá-lo até Jerusalém. E agora já anoitece e já chegam o Shabat e a festa de Pessach. Não para mim. O mundo está vazio. Uma última e opaca luz acaricia o topo das colinas e essa luz não é diferente da luz vespertina que vimos ontem e anteontem. O vento que sopra do mar também se parece em tudo com o vento que ontem soprou sobre nós. O mundo inteiro está vazio. Talvez eu ainda pudesse me virar e voltar agora à estalagem, voltar para a serva grávida e feia com o rosto coberto de marcas de varíola, dar-lhe minha proteção, ser um pai para a criança em seu ventre e ficar com ela e com a criança até meus últimos dias de vida. Adotar o cão vagabundo. Mas a estalagem já está fechada e escura e lá não há vivalma. A primeira estrela surge no céu que escurece e eu lhe digo num murmúrio "estrela, não acredite". Mais adiante, numa curva do caminho, aquela figueira morta está me aguardando. Eu examino cuidadosamente galho por galho, encontro o galho certo e amarro nele a corda.

Logo, os traidores seriam, na verdade, os mais fieis às causas. O próprio Oz afirmou isso em diversas entrevistas, como para o Estadão (aqui). E Shatiel Abravanel é o fantasma que assombra aquela casa onde habitam Atalia, Guershom e, por um período, Shmuel. É ele o traidor da nova pátria. Essa convivência com fantasmas é o ponto. Wald e Atalia vivem num universo à parte, presos no tempo e na história, e Shmuel é tragado para dentro desse ambiente.

Oz também é visto como um traidor da pátria, pela sua posição política. E, em De amor e trevas, fala de como renegou o pai, intelectual europeu, para viver como motorista de trator num kibutz socialista. Outro traidor.




Comentários

  1. Amos Oz fez parte da barulhenta esquerda israelí. Mas a imobilidade do conflito na região parece q sensibilizou-o e ele não mais acredita que os bons palestinos darão as mãos aos judeus. Até porque em matéria de lideranças, não consegue identificar os bons palestinos... E.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n