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Os Lemmings e outros, de Fabián Casas


Desde que comecei a publicar, as pessoas me perguntam: "Isto é autobiográfico, não é?" Ou: "O personagem é você, não é?" De modo que vou começar dizendo que tudo o que se vai narrar aqui é absolutamente verídico. Aconteceu realmente como vou contar. 
(conto: Casa com dez pinheiros)

Dizer que Buenos Aires é uma cidade literária é de um irritante lugar-comum. Mas o que dizer de um bairro? Sim, porque, no final das contas, na maioria das vezes os escritores se dedicam a um ou outro bairro. Borges dedica-se a Palermo Viejo, onde viveu quando criança  - e que está presente em A fundação mítica de Buenos Aires e em Evaristo Carriego (o primeiro texto, Palermo de Buenos Aires).

Borges fez parte do chamado Grupo de Florida, que nos anos 20 e 30 do século passado se reunia em torno do Café Tortoni e da Revista Martín Fierro. Estavam antenados nas vanguardas europeias e foram associados às classes mais altas da sociedade argentina. Hoje qualquer turista conhece o Café, a calle Florida, o bairro Palermo.

Mas houve também um outro grupo, de Boedo. Na época, houve alguma rivalidade entre ambos. Ao contrário do Florida, Boedo se reunia nos subúrbios e era mais associado às classes operárias. Roberto Artl era um dos seus expoentes. A literatura tinha um papel na revolução social - a arte comprometida. Você alguma vez visitou o Boedo?

Quase um século depois, o argentino Fabián Casas, nascido em Boedo em 1965, traz seu bairro em uma série de pequenos contos - Os Lemmings e outros (Editora Rocco, 2013, tradução de Jorge Wolff e posfácio de Carlito Azevedo). Mais um autor da série Otra Língua, coordenada por Joca Reiners Terron.


Nos oito contos, Casas cita de Schopenhauer a Darth Vader. E algumas referências como Asterix (Asterix, o zelador) tratam, na verdade, de autores como Sebald (Austerlitz):

Levei-o para casa, emprestado, numa edição espanhola. Comecei a ler e, lá pela página 40, me demoliu. Confesso. Era outro livro de um alemão hiperculto que se encontra com um tal Austerlitz, que é mais culto ainda que ele. Não pode passar uma mosca sem que este Austerlitz a rodeie com todo o pensamento ocidental (...) comecei a escutar uma voz que replicava em minha cabeça: primeiro dizia, claramente, Austerlitz!, Austerlitz!, mas depois ia declinando para Asterix!, Asterix! Asterix, aqui, é na verdade Rodolfo, o zelador...

Muito se tem destacado que as narrativas do livro são reminiscências da infância e da juventude do autor (que já disse ter pouca imaginação e, por isso, recorre às suas experiências - deixando claro que tem pouca memória). O bairro Boedo, o time do San Lorenzo. Isto parece bem evidente.

Mas há algo a mais. Casas parece carregar suas narrativas com uma ironia bastante sutil. Uma prosa extremamente coloquial e de fácil leitura, mas que oferece também uma visão bastante crítica e irônica - afinal, quem você acha que é Pablo Conejo, autor "mexicano, que escreve livros de autoajuda que vendem como coca-cola"?

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