Pular para o conteúdo principal

Conto da semana, de Stephen Leacock

Um conto que poderia ter sido contado por um amigo, num café qualquer por aí. Parece que foi ontem - ainda que faça tempo que não falemos em "prestidigitador". Obviamente, tirei do recém-relançado Mar de Histórias - Paulo Rónai & Aurélio. Leacock (1869-1944) nasceu no Canadá e é um dos mestres do conto de humor.

Stephen Leacock.jpg
Stephen Leacock: nunca esculhambe um mágico em público


- Agora, senhoras e senhores - disse o mágico - tendo-lhes mostrado que este pano está absolutamente vazio, passo a retirar dele um aquário de peixes dourados. Pronto!

Em torno dele, a assistência comentava:

- Que maravilha! Como será que ele faz?

Mas o Homem Sabido da cadeira da frente disse, num cochilo audível, às pessoas ao lado:

- Ele o tinha escondido na manga.

Então a assistência fez ao Homem Sabido, com a cabeça, um sinal de concordância inteligente, e disse:

- Claro!

E todos cochicharam pelo salão:

- Ele o tinha escondido na manga.

- Agora, a minha mágica - disse o prestidigitador - são as famosas argolas hindustânicas. Observem que as argolas estão, evidentemente, separadas; um sopro, e ei-las juntas (tlim, tlim, tlim)... Presto!

Houve um murmúrio geral de estupefação, até que se ouviu o Homem Sabido murmurar:

- Ele devia ter outras argolas escondidas na manga.

Outra vez concordaram com a cabeça, e cochicharam:

- As argolas estavam na manga dele.

O semblante do mágico anuviou-se, com um franzir de sobrancelhas.

- Agora - continuou - vou-lhes mostrar uma mágica bem divertida, que me permite retirar de um chapéu qualquer quantidade de ovos. Um dos cavalheiros aqui presentes poderia ter a gentileza de emprestar-me o chapéu? Ah, muito obrigado... Presto!

Extraiu dezessete ovos, e durante trinta e cinco segundos a assistência começou a pensar que ele era maravilhoso. E então o Homem Sabido cochichou pelo banco da frente:

- Ele tem uma galinha escondida na manga.

E todo mundo cochichou adiante a novidade:

- Ele tem uma porção de galinhas escondidas na manga.

A mágica dos ovos foi um desastre.

E o espetáculo continuou mais ou menos assim. Pelos cochichos do Homem Sabido, percebeu-se que o mágico devia ter escondido na manga, além das argolinhas e peixes, diversos baralhos, um pão, um berço de boneca, um porquinho-da-índia vivo, uma moeda de cinquenta centavos e uma cadeira de balanço.

A reputação do mágico descera rapidamente abaixo de zero. Pelo fim da noite, ele reanimou-se para um esforço final:

- Minha senhoras e meus senhores, para terminar, apresentarei uma formosa mágica japonesa, recentemente inventada pelos habitantes de Tipperary. O cavalheiro aí - continuou, dirigindo-se ao Homem Sabido - , o cavalheiro quer ter a bondade de entregar-me o seu relógio de ouro?

O relógio foi-lhe entregue.

- O cavalheiro me autoriza a colocá-lo neste almofariz e a despedaçá-lo? - perguntou, fulo de raiva.

O Homem Sabido disse que sim com a cabeça e sorriu.

O mágico atirou o relógio no almofariz e agarrou um malho que se achava em cima da mesa.

Ouviu-se um barulho de algo esmagado com violência.

- Ele o escondeu na manga - cochichou o Homem Sabido.

- Agora, cavalheiro - continuou o mágico -, permite-me tomar o seu lenço e esburacá-lo? Obrigado. Vejam, senhoras e senhores, não há engano possível; todos estão vendo os buracos.

O Homem Sabido estava radiante. Desta vez o mistério real da coisa fascinava-o.

- E agora, cavalheiro, quer ter a bondade de retirar seu colarinho de celulóide e permitir-me queimá-lo com a vela? Obrigado, cavalheiro. E permite-me espatifar os seus óculos com o meu martelo? Obrigado.

Por essas alturas, as feições do Homem Sabido estavam tomando uma expressão de perplexidade.

- Não compreendo este negócio - cochichou. - Não consigo entendê-lo nem um pouquinho.

Fez-se grande silêncio no auditório. Então o mágico se empertigou em toda a sua estatura e, com um olhar fulminante para o Homem Sabido, concluiu:

- Senhoras e senhores, queiram observar que, com a permissão deste cavalheiro, quebrei-lhe o relógio, queimei-lhe o colarinho, espatifei-lhe os óculos e dancei-lhe em cima do chapéu. Se ele me permitir ainda pintar-lhe o sobretudo de listras verdes e dar-lhe um nó nos suspensórios, ficarei encantado em poder divertir os meus espectadores, Caso contrário, está terminado o espetáculo.

Envolto numa explosão de música de orquestra, caiu o pano e a assistência dispersou-se, convencida de que há algumas mágicas, pelo menos, que não dependem da manga do mágico.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n