Pular para o conteúdo principal

Civilização, de Kenneth Clark


 
 
Civilização é algo mais do que energia, vontade e poder criativo; algo que os normandos não possuíam, mas que, mesmo na sua época, estava reaparecendo na Europa Ocidental. Como defini-la? Em poucas palavras: um sentido de permanência. Os nômades e invasores viviam num fluxo contínuo. Não sentiam necessidade de ver além do próximo fim de inverno, ou da próxima viagem ou da próxima batalha. Por isso não construíram casas de pedra nem escreveram livros. Dos livros de pedra construídos nos séculos posteriores ao Mausoléu de Teodorico, um dos únicos a sobreviver foi o Batistério de Poitiers. É muito primitivo. Os construtores tentaram usar elementos de arquitetura romana, capitéis, frontões, pilares, mas esqueceram suas intenções primeiras. Mas, pelo menos, esta construção precária se conservou. Não é apenas uma tenda. Acho que o homem civilizado precisa sentir que ele tem uma lugar no tempo e no espaço e que tem um futuro e um passado.
 
O livro é, praticamente, a série produzida pela BBC de mesmo nome, apresentada pelo autor (1913-1983). Cada capítulo corresponde a um dos episódios e, se você buscar no Youtube, estará acompanhando exatamente o conteúdo do livro.
 
Ler Civilização em 2016 teve, em mim, um efeito dúbio.
 
Por um lado, é notável ver como Kenneth Clark resume o que efetivamente vale a pena da civilização ocidental. Uma pequena história do ocidente através de sua arte - arquitetura e pintura em destaque, mas também a música e algo de literatura.
 
Há passagens memoráveis, como ao tratar da importância de Carlos Magno na formação da "civilização ocidental" e da Europa como as conhecemos. O texto é simples, direto. Clark acredita no poder do indivíduo - e deixa claro ao cuidar de Giotto, Dante, São Francisco de Assis, Vermeer, Rembrandt..., ao mesmo tempo em que afirma que a civilização ocidental como um produto da Igreja.
 
É a defesa de uma tradição. É um livro absolutamente cativante e fundamental.
 
Mas o primeiro e o último capítulos, justamente quando o autor apresenta seu conceito de civilização e, depois, quando expõe sua opinião sobre o que vem por aí, são angustiantes.
 
Clark diz que as civilizações acabam devido à exaustão. E é possível mesmo que por exaustão ele inclua uma certa capitulação. No mundinho politicamente correto (que é altamente seletivo, no sentido em que se escolhe as "minorias" certas a serem protegidas) vale de tudo. Até mesmo deturpar a história.
 
Clark se diz otimista. A série é de 1969. As civilizações são frágeis, diz, e podem ser destruídas. Mas ele acreditava que americanos e soviéticos não fossem se destruir.
 
Mas estamos em 2016. Eu sou pessimista.
 
Veja o episódio recente, em que o governo italiano cobriu as estátuas nuas renascentistas para a visita do presidente iraniano. Alega respeito mas, na verdade, há uma capitulação. A civilização acaba quando se tem vergonha de defendê-la.
 
Sob o pretexto de tolerância, desiste-se de ser o que é. Isto é hastear bandeira branca, talvez por complexo de culpa, demagogia ou fraqueza.
 
A propósito: Clark delimita sua civilização à ocidental, reconhecendo não ser a única existente, mas sim, a única que conhece.
 
Há um movimento em curso que busca retirar do currículo escolar estudo dos gregos e romanos, bem como a maior parte da história europeia. Mas não se pode entender o Brasil sem Portugal, o final da Idade Média, Reforma e contra-Reforma e tal...
 
Para o americano e o europeu, de um modo geral, o Brasil não faz parte do Ocidente. Muitos brasileiros pensam assim - e há os que trabalham firmemente para isso.
 
Mas então... somos o quê?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei...

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa...

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n...