Pular para o conteúdo principal

Timbuktu (2014), de Abderrahmane Sissako

Descobri na TV, quase por acaso, o menos falado dos candidatos ao Oscar de filme estrangeiro de 2015, o ótimo Timbuktu, de Abderrahmane Sissako.

Timbuktu (2014) Poster

Por maiores que sejam as fronteiras que esta Biblioteca se propõe a cruzar, nem em meus maiores delírios imaginei postar sobre o Mali - e, menos ainda, sobre um filme de um diretor de lá.


Timbuktu - a cidade histórica, que vem sendo tragada pelas areias do deserto - foi um importante centro de difusão de conhecimento e do islamismo na África, tendo vivido sua era de ouro lá pelo século XVI. Até hoje conserva manuscritos de valor inestimável, que vem sendo saqueados ao longo das inúmeras guerras e invasões...

O filme de Sissako é uma preciosidade. Começa com a cidade sendo ocupada pelo Exército Islâmico (o foi por alguns meses), espalhando terror e extremismo já por todos conhecidos. Nada de música (ou 40 chibatadas). E nada de futebol - uma das grandes cenas mostra uma partida sem bola. A população tenta se adaptar ao novo regime - um aspecto interessante - o filme é falado em várias línguas, como o tuaregue, o árabe, o francês. Para os jihadistas, os locais não são muçulmanos o suficiente.

Obs.: os jihadistas, apesar da proibição, conversam sobre o esporte e discutem sobre Messi. Lá pelas tantas um deles afirma peremptoriamente que o Brasil vendeu a final de 1998 - "um país pobre, a França enviou um navio cheio de arroz"...

Uma família tuaregue - o núcleo central da trama - tem problemas com um pescador encrenqueiro. Este mata a vaca predileta da filha de Satima; o marido/pai vai tirar satisfações e acaba matando o desagradável desafeto. Isso o coloca sob a mira da Sharia. A mãe também tem problemas - é cortejada por um dos invasores, Abdelkerim. A partir daí, a história se adensa, fica mais dramática e emotiva - como a frase de Kidane, o marido de Satima, prestes a ser executado, ao explicar porque não está procurando a direção de Meca. 

História intensa, grande roteiro, fotografia muito apurada e cenas e diálogos antológicos fazem de Timbuktu um dos grandes injustiçados pela Academia deste ano.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n