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Sépharade, de Eliette Abécassis

Sépharade
Sépharade
Eliette Abecassis
Albin Michel, 2009

Sépharade estava na minha fila de espera há cinco anos. Não conhecia a autora,Eliette Abécassis (1969), que tinha acabado de lançá-lo em Paris, em 2009. Recomendação do livreiro da Tschann.

Mas logo descobri ter sido ela a co-roteirista (junto com o diretor) do celebrado Kadosh, de Amos Gitai. Sua família é profundamente religiosa; seu pai, Armand Abécassis, é conhecido pensador do judaísmo.


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Lembro imediatamente de Tatiana Levy Salem e seu A chave de casa. Tatiana é mais ousada e inovadora na forma; Abécassis é mais convencional - o enredo é relativamente simples - e não muito animador:

Esther, judia marroquina nascida em Strasburgo (como a autora), está para se casar com Charles. Seus pais não aprovam a ideia. As famílias são sefarditas do Marrocos, que sempre abrigou uma importante comunidade judaica. Aos poucos, somos apresentados aos membros das famílias Pinto e Tolédano, reunidos em Tel-Aviv para o evento. Lá, os conflitos afloram. De fato, em princípio, parece mais um novelão. O "segredo dos sefardis" deve ser revelado a Esther no dia do seu casamento, mas ao que parece é roubado dias antes. O acusado inicialmente é Charles... As famílias tiveram seus problemas no passado não muito remoto, e uma grande surpresa é revelada ao final.

Mas o leitor avança, fácil, na obra.

Esther é marcada pelas duas culturas - alsaciana e sefardita. Parece levar o mundo (pelo menos o mundo sefardita) nas costas. A questão das identidades múltiplas: é a tônica do livro; é o seu mote. Numa tradução por minha conta:

Todos nós temos identidades múltiplas.

Todos vimos de um país, uma cidade, ou de uma rua que nos define e nos marca para sempre. Somos originários de uma cultura ancestral que nos aprisiona ao mesmo tempo que nos fecunda. Na vida, representamos os papeis que mudam em função da situação e do interlocutor, do lugar e do momento: existimos, múltiplos de nós mesmos, ignorando a origem dessas identidades que surgem independentemente de nós, e que determinam nossas ações, pensamentos e sentimentos.

Em outro momento:

Esther acreditava ser francesa, alsaciana, judia, marroquina, e não sabia que era espanhola. Pensava que era espanhola e era árabe, acreditava ser árabe e era bérbere, acreditava ser bérbere e era fenícia, e assim por diante, desde o início, o começo e até o fim dos tempos.

Um contraponto interessante se dá entre Esther e sua irmã Myryam, que se casou com um canadense, virou budista e, evidentemente, não dá a mínima para a origem familiar. 

O maior mérito da obra é apresentar, ao longo do romance, a história dos judeus sefarditas, desde os fenícios, a chegada dos judeus à Espanha (e a expulsão em 1492), as perseguições, a diáspora, os marranos, a Inquisição... Montaigne e Spinoza aparecem por lá, bem como Maimonides e Canetti. Também consegue retratar a vida e a importância de Toledo como grande centro da civilização. 

Muitos momentos interessantes - em especial para o leitor conhecedor dessa cultura - como a Aliança Israelita Universal e a relação entre os judeus e o rei do Marrocos - inclusive depois de 1948, quando há um claro desconforto e sentimento de ingratidão com a partida de levas de judeus para Israel.

Outro ponto de destaque (um dos melhores): deixa evidente os conflitos entre sefarditas e asquenazes (inclusive dentro de Israel, que lhes teria reservado as piores terras). Mentalidades diferentes; estes racionais, aqueles, passionais ao extremo. Em determinado momento, Esther se dá conta que a psicanálise jamais poderia ter sido criada no meio sefardita...

A autora consegue fazer isso sem transformar seu livro em um documentário - utiliza-se, com muita habilidade, dos diálogos entre os parentes, em especial os mais velhos. Consegue fugir do didatismo que acaba atrapalhando a ficção. Erudição na medida.

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