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O que ela sussurra, de Noemi Jaffe




Tatianna me critica: eu não deveria dedicar minha vida a memorizar poemas que não serão lidos nem impressos e menos ainda publicados, me arriscando por palavras que não fui eu quem criou, ainda mais depois de você ter perdido a vida só por causa de um poema que criticava aquele georgiano filho da mãe. Eu mesma tmbém me critico, Óssia, mas tudo isso é mais forte que minha vontade, é o próprio corpo que quer e que só mantém a saíde, ainda que frágil, à custa de cigarros Belomon e sussurros. Se não te digo teus poemas algumas horas antes de dormir, todas as noites, enfraqueço, o cansaço pesa mais e mal consigo dormir as poucas horas que a exaustão me permite. Não faço isso para que você tenha a chance de ser lembrado na posteridade e para que teus poemas não se percam no esquecimento. Faço por mim, para me manter viva, para atenuar o buraco das horas, para que meus músculos tenham vigor na medida exata para acordar no dia seguinte.

Ossip Mandelstam (1891-1938) pertenceu aos Acmeístas, grupo de poetas de São Petersburgo que incluía Anna Akhmátiva. O movimento se opunha ao Simbolismo.

Entre tantas obras, Mandelstam escreveu "O montanhês do Kremlin", poema absurdamente explícito e contrário a Stálin, o montanhês de "dedos gordos como vermes". 

Em The Magical Chorus, ainda não traduzido no Brasil, Solomon Volkov conta que Pasternak não viu poesia alguma nesses versos e ficou horrorizado com sua declamação, não apenas pela ousadia política como pela provocação direta, num estilo quase caricato. E teria dito: "Isso não é literatura, é um ato suicida, que não aprovo e do qual não quero fazer parte".  Mandelstam, por sua vez, viu de outra forma: "os Jovens Comunistas irão cantá-lo pelas ruas! No Teatro Bolshoi... em congressos... por toda parte". Mas sabia dos riscos: "Se me acharem, poderei ser executado".

Obviamente, Pasternak estava certo, e o poema significou o início de uma espiral de acontecimentos que culminou com a morte de Mandelstam. O inferno começou em 1934, por poesia "anti-Stálin". Alguém ouviu seu poema e resolveu denunciá-lo.

Em O que ela sussurra (Companhia das Letras), livro recém-lançado pela escritora e crítica literária Noemi Jaffe, a esposa de Ossip, Nadejda (que significa nada menos que "esperança" em russo, como ela mesmo irá nos contar), sabe das limitações da poesia - "se fossem capazes de mudar o mundo, não seriam poemas, mas máquinas".

Nadejda se ressente de escritores que se recusam a falar com eles (foi o caso do próprio Pasternak e sua esposa, que pediu que parassem de visitá-lo), decepciona-se com a adesão de escritores ao partido e ao regime (como ela odeia Gorki!), teme pela própria vida e pela do marido, analisa os riscos dos inúmeros informantes...

Ela sabe, por exemplo, que Ossip não escreveu o tal poema ("o poema sobre o georgiano imbecil, que, aliás, eles nunca encontrariam, porque Óssip nunca o escreveu em lugar nenhum").

Mas a essa altura, pouca diferença faria. O marido fora denunciado, e no regime de terror isso é mais do que suficiente. Isolem, mas preservem, foi a ordem dada, após um inesperado telefonema de Stálin para Pasternak. O casal é enviado para Vorônej. Akhmátova consegue visitá-los. Ossip consegue uma breve libertação, mas é novamente preso e morre, exausto, no gulag, em  27 de dezembro de 1938.

Se hoje conhecemos Ossip Mandelstam, devemos a Nadejda, que memorizou seus poemas e textos, enquanto trabalhava na máquina de costura. Ela mesmo se mostrou uma escritora de talento, como se viu, depois, em seus livros de memórias, escritos nos anos 60  (que também não foi editado à época, circulando pelos famosos samizdat, até finalmente ser publicado no Ocidente, nos anos 70, tornando-se uma sensação - ainda segundo Volkov).

Noemi faz uma reconstituição precisa do período, e através de sua prosa esmerada conhecemos os detalhes da vida privada - se esse termo é possivel de ser usado na União Soviética dos anos 30 - de um grande personagem (na verdade, dois). Um grande trabalho de pesquisa e de escrita lançado em março.  




Comentários

  1. Volkov devia ter seus livros editados aqui. Um deles rememora Shostacovich e sua trágica vida no período stalinista. O compositor é um retrato fiel de uma ideologia, de uma época além de representar uma advertência frente aos anos que vivemos.

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  2. O Julian Barnes tem um livro sobre o Shostakovich, que já falei aqui - https://bibliotecadofabio.blogspot.com/2016/06/the-noise-of-time-de-julian-barnes.html
    Já saiu a edição brasileira.

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