Pular para o conteúdo principal

A segunda pátria, de Miguel Sanches Neto

A segunda pátria
Miguel Sanches Neto
Intrínseca, 280 p.

É o primeiro romance que leio de Miguel Sanches Neto - este que é sua estreia na editora Intrínseca que, aos poucos, vem procurando incrementar seu catálogo de escritores nacionais.

O tema - o nazismo no Brasil na época da Segunda Guerra - é estranhamente negligenciado entre nós. E, evidentemente, o que me atraiu ao livro foi lembrar-me de Complô contra a América, de Philip Roth. A linha do "e se?". E se Roosevelt perdesse a eleição para um simpatizante do nazismo (no caso, Charles Lindbergh)?

E se Getúlio tivesse cedido aos seus impulsos e ficado do lado do Eixo? O que teria acontecido ao país? À população? 

Resultado de imagem para miguel sanches neto

O grande risco é cair numa história absolutamente inverossímil. Roth em nenhum momento cai nessa armadilha.

Miguel Sanches Neto também sai disso com maestria. E, nesse tipo de livro, quanto mais plausível a história, mais assustadoramente interessante é o enredo.

De fato, Getúlio pendeu por muitos anos entre Aliados e o Eixo. E, seguramente, uma parcela importante da população do Sul do País, abrangendo as colônias alemãs e, em menor escala, italianas, via com esperança o avanço de Hitler. Na época, as teorias de eugenia e purificação de raças eram bastante populares, e não só no sul.

A partir daí, o autor avança no "se": no contexto brasileiro, a grande vítima seria o negro, e não o judeu (lembre-se: estamos falando da região sul, onde o negro era efetivamente uma minoria, além do fato de que, no final da década de 30, a escravidão era algo ainda recente), ainda que não ignore o fato de que os judeus não durariam muito por aquelas bandas. A "solução" política que permitiu esse regime também é apresentada de forma convincente.

Os personagens principais - o negro Adolpho Ventura e a alemã Hertha - também aparecem muito bem, cada qual com aspectos bem trabalhados.

Hertha era tão escorregadia quanto Getúlio, vivendo entre os alemães nazistas (e se prestando ao papel de fêmea da nova raça) e seu vínculo com o Brasil - são igualmente eficientes. 

Ventura, negro afilhado de um alemão, domina o idioma, sente-se conterrâneo de Goethe, mas descobre que nada disso mais importa. De certa forma, lembra um pouco a situação do judeu de nascimento e luterano por opção Victor Klemperer em seu Diário. Em determinado momento, perde até sua tão amada biblioteca (o que um negro faria com tanto livro germânico?)

Dos personagens reais, o mais interessante é o Anjo Negro...

E, tal como Roth, Miguel faz a história retomar seu rumo, acordando do pesadelo, com uma solução igualmente interessante. O importante, claro, é que a História alternativa, depois de se mostrar um verdadeiro desastre, dê lugar à linha do tempo que conhecemos; quase que uma reentrada na atmosfera, procedimento dos mais arriscados nas missões espaciais. 

Mas o pouso de A segunda pátria é seguro. 

Por fim, um diário; não de Ventura, Hertha ou Klemperer, mas do próprio autor, relatando o processo de criação do romance. Vale a pena - inclusive, confirma as referências que fiz ao longo da leitura...







Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O conto da semana, de Italo Calvino

O conto da semana é novamente de Calvino – Quem se contenta – e integra Um General na Biblioteca : Havia um país em que tudo era proibido. Ora, como a única coisa não-proibida era o jogo de bilharda, os súditos se reuniam em certos campos que ficavam atrás da aldeia e ali, jogando bilharda, passavam os dias. E como as proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que pudesse reclamar ou que não soubesse se adaptar. Passaram-se os anos. Um dia, os condestáveis viram que não havia mais razão para que tudo fosse proibido e enviaram mensageiros para avisar os súditos que podiam fazer o que quisessem. Os mensageiros foram àqueles lugares onde os súditos costumavam se reunir. - Saibam – anunciaram – que nada mais é proibido. Eles continuaram a jogar bilharda. - Entenderam? – os mensageiros insistiram – Vocês estão livres para fazerem o que quiserem. - Muito bem – responderam os súditos – Nós jogamos bilharda. Os mensagei

Conto da semana, de Jorge Luis Borges - Episódio do Inimigo

Voltamos a Borges. Este curto Episódio do Inimigo está no 2º volume das Obras Completas editadas pela Globo. É um bom método para se livrar de inimigos: Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde. Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse. - Pensamos que os anos pa

A Magna Carta, o Rei João e Robin Hood

É claro que o rei João não se ajoelhou aos pés de Robin Hood, mas é interessante lembrar hoje, dia 15 de junho, quando a Magna Carta completa 800 anos, a ligação entre a ficção e a História, na criação do que pode ser considerado o mais importante documento da democracia. João Sem-Terra. John Lackland. Nasceu em Oxford, 1166, o quarto filho de Henrique II, o que lhe custou toda possibilidade de receber uma herança - daí seu apelido. Quando o irmão Ricardo (Coração de Leão) assume o trono, em 1189, recebe mais um golpe e, obviamente, irá fazer de tudo para tomar o poder. Em 1199, Ricardo é morto e João, finalmente, torna-se rei. Para custear as guerras, Ricardo aumentou drasticamente os impostos a um nível inédito na Inglaterra. Para piorar, ao retornar de uma Cruzada, foi feito prisioneiro dos alemães. Há quem diga que o resgate cobrado (e pago) seria equivalente a 2 bilhões de libras. Na época de João, o cofre estava vazio, mas as demandas, explodindo como n