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Ele está de volta, de Timur Vermes


Ele está de volta
Timur Vermes - tradução de Petê Rissatti
Intrínseca, 304p.


Eu me lembro do momento em que acordei, devia ser início da tarde. Ao abrir os olhos, vi o céu acima de mim. Estava azul, com poucas nuvens, clima ameno, e logo ficou claro que estava ameno demais para abril. Quase se podia dizer que estava quente. Parecia relativamente calmo, acima de mim não havia nenhuma aeronave inimiga, nem o estouro da artilharia, nenhum ataque nas proximidades, nenhuma sirene de alerta de ataque aéreo. Também observei que não havia chancelaria do Reich ou o bunker do Führer. Virei a cabeça e vi que eu estava deitado no chão de um terreno baldio, cercado pelas paredes de tijolos das casas vizinhas, que tinham sido parcialmente pichadas por pivetes; ver isso me deixou irritado no mesmo instante e decidi, espontaneamente, chamar Dönitz para uma conversa. A primeira coisa que pensei, meio sonolento, foi que Dönitz também devia estar em algum lugar por ali. Mas então, a disciplina e a lógica venceram e logo percebi a peculiaridade da situação: eu não costumava acampar a céu aberto.

Um livro estranho, esse do alemão Timur Vermes. O peço de capa, na Europa, é 19,33 euros.  Tudo uma grande provocação. Uma história narrada por um perturbado Adolf Hitler, que acorda num terreno baldio em Berlim. Procura por soldados nazistas e soviéticos, e logo percebe o que lhe aconteceu: está em 2011, num mundo completamente estranho (ainda bem).

Numa Alemanha que lhe é exótica, acaba confundido com um ator que imita Hitler - à perfeição, as pessoas reconhecem. Participa de um programa de televisão de um comediante turco... e, evidentemente, ninguém imagina que aquela figura é, de fato, o Führer. O sujeito se vê numa Alemanha coalhada de imigrantes muçulmanos - em determinado momento, sobra até para as "amantes brasileiras", quase um item de cesta básica alemã. É evidente que, ao longo da leitura, há diversos momentos hilários.

E esse parece ser, no fundo, o problema. Na história, é óbvio que ninguém sabe que Hitler é Hitler. Mas o leitor sabe. E percebe como as pessoas reagem ao vê-lo e ao ouvi-lo. Ele critica Merkel, a União Europeia; o Partido Verde é visto como uma agremiação perfeitamente compatível com o seu pensamento; os imigrantes foram uma grande sacada - ao invés de matá-los, escravizá-los ou deportá-los, os alemães agora os colocam para trabalhar em atividades periféricas com salários baixos - como ele nunca havia pensado nisso?

A crítica à Alemanha e à Europa modernas feita por Hitler causou grande desconforto e polêmica na Europa, onde o livro de Vermes foi recebido em meio a intensa polêmica. O "comediante Hitler" faz sucesso porque, no fundo, a pacata e civilizada plateia alemã está farta de tudo isso, e é presumível que a esquerda verde odeie autor e obra.

E é esse o ponto que torna o livro mais interessante: será que, hoje, a civilizada sociedade europeia estaria imune a outro Hitler? A resposta do livro é um sonoro não.

Mas o próprio livro é por vezes caricato demais - o pessoal da mídia só quer saber da audiência; os políticos, todos oportunistas. Não espere nada sutil. Por outro lado, hoje perdemos a capacidade de perceber um deboche desacompanhado de "kkk" ou "rsrsrs", e talvez se possa lê-lo como isso - um grande deboche das forças "progressistas" e "europeias".

Ao final, trata de como os alemães reagiram a um ataque físico sofrido pelo narrador:

Também fui apontado não só como combatente da violência, mas várias vezes um defensor dela (cristãos democratas, duas associações de atiradores e um fabricante de armas de fogo) e uma vez vítima da violência contra idosos (Partido da Família). Com especial diletantismo, se destacou uma ligação do Partido Pirata, que acreditou reconhecer no meu comportamento e, especialmente, na minha renúncia a um boletim de ocorrência, um protesto contra o policiamento e um especial distanciamento do Estado e, nessa lógica, eu tinha um "pensamento pirata" completo. 

Vermes é o roteirista da versão cinematográfica que está em andamento. 

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